Análise: depois de Barack Obama, os Estados Unidos nunca mais serão os mesmos
Presidente democrata carregou duro fardo em silêncio por ter sido o primeiro negro a comandar os EUA, servindo de exemplo para a população de um país que luta constantemente contra o racismo
Em todos os anos em que trabalhei para Barack Obama, não pensei o suficiente sobre os fardos de ser o primeiro presidente negro dos Estados Unidos – em parte porque ele os suportou muita elegância.
Houve fatos estimulantes, é claro, como quando, ainda no início de sua campanha eleitoral para a Casa Branca, agentes do Serviço Secreto se tornaram uma presença constante em sua vida, devido ao excessivo número de ameaças de morte contra ele.
Houve memes abertamente racistas sobre sua cidadania, fé e dignidade alimentados por demagogos e mídias sociais, que continuaram durante sua presidência.
Foi preciso outra pessoa para abrir meus olhos e me fazer pensar mais profundamente sobre o extraordinário fardo – e responsabilidade – de ser um pioneiro na posição mais alta de uma nação na qual a luta contra o racismo é contínua.
Se nomeada, Sotomayor se tornaria a primeira latina na mais alta corte do país. O presidente me pediu para conversar com ela e avaliar como ela se comportaria sob as pressões da confirmação do processo e com o peso disso.
Encontrei-me com Sotomayor no Eisenhower Executive Office Building, no complexo da Casa Branca, onde ela foi convocada para uma rodada final de entrevistas. Perguntei a ela o que, se é que havia alguma coisa, a preocupava com o processo.
“Eu me preocupo em não estar a altura”, respondeu sem rodeios.
Ficou instantaneamente claro para mim que essa juíza brilhante e talentosa, que que lutou para sair da pobreza no South Bronx e ir para Princeton e Yale Law School, estava falando mais do que sobre suas próprias ambições.
Como primeira, ela sabia que também levaria consigo as esperanças e aspirações de jovens latinas em todos os lugares. Seu sucesso seria sua inspiração. O fracasso dela seria o revés deles.
Essa conversa me levou a reconsiderar o fardo silencioso que o próprio presidente carregou tão bem e por tanto tempo sob os holofotes mais intensos do planeta. O fardo não era apenas o racismo, mas a responsabilidade de medir, superar, quebrar estereótipos e ser um modelo impecável em um dos trabalhos mais difíceis e importantes do mundo.
Assistindo ao episódio da série de documentários da CNN “The 2010s” sobre Obama, lembrei-me novamente de como ele resistiu bem com esses fardos.
Não é que ele tenha acertado tudo. Nenhum presidente acerta em tudo. E sempre haverá um debate sobre o quanto a eleição do primeiro presidente negro contribuiu para a reação reacionária, que elegeu Donald Trump, uma figura divisiva e tóxica que levaria o país em uma direção totalmente diferente.
Mas a história é clara: Obama conduziu a nação durante uma épica crise econômica e guerra, aprovou uma legislação histórica sobre assistência médica e fortaleceu a rede de segurança social, reforçou a posição dos Estados Unidos no mundo e, em nossos momentos mais dolorosos, confortou a nação ao falar eloquentemente ao que Abraham Lincoln chamou de “melhores anjos de nossa natureza”.
Contra a pressão implacável de ser o primeiro, e toda a raiva e ressentimento que isso pode ter despertado entre alguns temerosos de mudança, Obama foi consistentemente atencioso, honrado e equilibrado. Ele se portava com a reconfortante autenticidade de um homem que sabe quem ele é – e nunca vacilou.
Quando Obama estava considerando uma campanha para presidente no outono de 2006, um pequeno grupo de amigos e conselheiros se reuniu com ele em meu escritório em Chicago para avaliar uma possível disputa.
Michelle Obama – talvez a maior cética na sala naquele momento sobre a conveniência de uma jornada tão audaciosa – fez uma pergunta fundamental: “Barack, se resume a isso: há muitas pessoas boas e capazes concorrendo à presidência. O que você acha que poderia contribuir que os outros não poderiam?”
“Existem muitas maneiras de responder a isso, mas de uma coisa eu tenho certeza: no dia em que eu levantar minha mão para fazer o juramento de posse como presidente dos Estados Unidos”, respondeu ele, levantando a mão direita, “o mundo olhará para nós de forma diferente, e milhões de crianças – crianças negras, crianças hispânicas – se verão de maneira diferente”.
Dois anos depois, no Grant Park de Chicago, onde Obama reivindicou a vitória, observei um mar de humanidade, incluindo pais negros com lágrimas escorrendo pelo rosto enquanto seguravam seus filhos no alto para testemunhar a cena.
E houve a foto icônica no Salão Oval do Jacob Philadelphia, quando um menino de apenas 5 anos de idade, filho de um funcionário da Casa Branca que estava deixando o governo, olhou para o presidente e perguntou: “Seu cabelo é igual ao meu?”
Obama inclinou a cabeça para o menino e disse-lhe: “Vá em frente, toque”. O que ele fez.
Foi uma cena comovente e espontânea, capturada pelo esplêndido fotógrafo da Casa Branca Pete Souza. O momento falou muito sobre Obama, seu significado em nossa história e a responsabilidade única que ele carregava.
Quando o presidente curvou a cabeça para o garotinho, sua mensagem silenciosa foi clara: “Sim, você é como eu. Sim, você pode sonhar grandes sonhos”.
Sob pressões extraordinárias, Obama mais do que esteve à altura, não apenas como presidente, mas como modelo. Como o primeiro.
E só por isso que os Estados Unidos nunca mais serão os mesmos.
*Traduzido e publicado por Pedro Jordão, da CNN