Irlanda do Norte: Brexit, mudança demográfica e tensões familiares geram divisão
Protestantes legalistas fazem marchas e fogueiras em 12 de julho; neste ano, há temores de que a agitação possa se espalhar pelas ruas


A irlandesa Niamh Burns está organizando uma reunião especial de 20 anos com suas ex-colegas de escola. Mas, embora valha a pena comemorar as conquistas das “Turmas Corajosas de 2001”, a data que estão comemorando não é.
Ao longo de 12 semanas em 2001, Burns e as outras alunas da Escola Primária para Meninas de Holy Cross, no norte de Belfast, Irlanda do Norte, foram vítimas de uma enxurrada de ataques de um grupo de protestantes legalistas (leais ao governo britânico) que bloqueavam seu caminho até o portão da escola.
A agitação, relatada em todo o mundo na época, começou na última semana antes das férias de verão, e voltou em forma de violência no retorno das crianças à escola no outono. Uma multidão enfurecida jogava balões cheios de urina e, por fim, uma bomba tubo atingiu crianças – algumas com apenas 5 anos – que se arriscavam todos os dias para entrar na escola.
À época, fazia três anos desde a assinatura do Acordo da Sexta-feira Santa, o acordo de paz histórico (também chamado Acordo de Belfast) que marcou o fim do conflito de décadas conhecido como os Troubles (os “Problemas”). Mas as tensões sectárias ainda eram abundantes no bairro de Ardoyne, em Belfast.
Duas décadas depois, a violência pode voltar num estalar de dedos na Irlanda do Norte, com a dor do passado ainda gerando descontentamento.
O dia 12 de julho é a data da tradicional celebração anual da vitória do rei Guilherme de Orange sobre o rei católico Jaime II na Batalha de Boyne em 1690. Na data, os protestantes legalistas fazem marchas e fogueiras. Neste ano, há temores de que a agitação possa se espalhar pelas ruas, como aconteceu brevemente no início deste ano.
O catalisador para o caos na escola Holy Cross em 2001 ainda é controverso: os protestantes legalistas, que se identificam como britânicos, dizem os nacionalistas católicos, que se identificam como irlandeses, derrubaram um legalista de uma escada enquanto ele pendurava uma bandeira antes da tradicional temporada de marchas legalistas. Já os nacionalistas católicos dizem que foi um ataque à presença deles em uma área de maioria protestante.

Mas havia uma questão ainda maior por trás da contenda: enquanto o bairro católico Ardoyne prosperava, o êxodo protestante do enclave vizinho de Glenbryn se intensificava, com alegações de intimidação dirigidas a republicanos nacionalistas.
A disputa da escola Holy Cross mostrou o quão frágil era a nova paz. Seu impacto contínuo foi adicionado a um trauma coletivo que serve como um fio condutor em toda a Irlanda do Norte.
Enquanto outros lutaram para reconciliar o passado, anos de terapia e envolvimento entre comunidades ajudaram algumas das alunas da Holy Cross a seguir em frente.
“A gente nunca supera de verdade, apenas aprende a conviver com isso”, explica Burns, que tinha 5 anos quando os protestos eclodiram do lado de fora de sua escola.
Ela e sua irmã mais velha, também aluna, experimentaram terrores noturnos como resultado da violência. Mas, apesar de tudo, Burns diz que a escola “era um lugar seguro”: a vida continuava normalmente depois que elas entravam portão adentro.
Burns, uma assistente comunitária, diz que suas experiências na Holy Cross moldaram sua vida desde então de uma forma amplamente positiva: “Eu carreguei minha experiência comigo o tempo todo, o que me permitiu fazer o trabalho que estou fazendo agora”.
Para Gemma McCabe, outra ex-aluna da Holy Cross, as lembranças da disputa são dolorosas, mas ela diz que o incidente não definiu sua perspectiva.
“Fui criada para não deixar isso me atingir ou me derrubar”, contou. “Eu sei que foi um período traumático, mas para mim foi apenas um curto período da minha vida”.
Dizendo isso, McCabe olha para seu pai Gerry, que viveu o pior dos Troubles, quando a violência sectária entre o final dos anos 1960 e 1998 deixou mais de 3.500 mortos.
Gerry McCabe diz que ele e a esposa tentaram proteger a filha, que tinha 8 anos na época, do que estava acontecendo. “Verdade seja dita, provavelmente simplificamos a questão. Além de simplificar, demos uma enfeitada na história”.

McCabe entende por que seus pais tentaram protegê-la. “Conforme você envelhece, aprende a política da Irlanda do Norte e eu nunca teria entendido isso quando criança, mesmo. Então, como contar isso a uma criança? Não se conta”, afirmou.
Burns diz que seus pais evitavam a narrativa “nós e eles” e a incentivavam a se envolver em oportunidades que a beneficiariam sua comunidade como um todo. “Sim, tudo bem, vivemos em uma área que parece ser carente, que parece estar no noticiário por causa de coisas ruins, mas, na verdade, há muitas pessoas boas e oportunidades e tudo o que você precisa fazer é se envolver”, opina a jovem.
Após intensas negociações entre linhas sectárias, internacionais e religiosas – das quais Gerry McCabe participou, como chefe de um grupo de pais – os manifestantes concordaram em suspender sua campanha em novembro de 2001.
Para ele, o que aconteceu na escola Holy Cross foi uma aberração, mas que seguiu uma trajetória familiar: “São dois passos para frente e dez para trás”, explicou. “E esse é o tipo de sociedade em que vivemos por toda a minha vida”.
Nos 20 anos desde a disputa da Holy Cross, o tecido social da Irlanda do Norte mudou drasticamente, com uma seção crescente da sociedade abandonando os marcadores tradicionais da identidade britânica ou irlandesa, protestante ou católica.
Apesar dessa mudança, os mesmos setores da sociedade continuam se sentindo abandonados.
A privação, os baixos resultados educacionais e a falta de empregos há muito afetam as comunidades da classe trabalhadora em toda a Irlanda do Norte.
Mas, para os legalistas pró-britânicos, esse sentimento intergeracional de desesperança foi agravado por uma série de fatores externos que alguns temem que possam sinalizar uma fragmentação do próprio Reino Unido.
Parte dessa insegurança surgiu como resultado do Brexit
O Protocolo da Irlanda do Norte, parte do acordo que levou o Reino Unido a deixar a União Europeia, cria uma fronteira alfandegária no Mar da Irlanda para evitar que haja uma na ilha da Irlanda.
O problema para os unionistas (pró-Reino Unido) é que ele mantém a Irlanda do Norte na mesma união aduaneira que a República da Irlanda (um estado membro da UE), ao mesmo tempo que adiciona verificações sobre as mercadorias vindas do resto do Reino Unido, do qual a Irlanda do Norte continua fazendo parte. Eles se sentem traídos pelo acordo e pelo alinhamento alfandegário com a República da Irlanda, afirmando que o protocolo os coloca em situação diferente da Inglaterra, País de Gales e Escócia, as outras três nações que compõem o Reino Unido.
Para aumentar as preocupações dos unionistas, a popularidade do Sinn Féin só aumenta. Este partido republicano nacionalista, cuja ambição é ver as duas Irlandas unidas, está projetado para se tornar o maior partido na Assembleia da Irlanda do Norte pela primeira vez em sua história no próximo ano. O Sinn Féin também vem ganhando terreno além da fronteira, na República da Irlanda.
Do outro lado, o lado pró-britânico, o cenário político unionista está fragmentado. O partido protestante mais poderoso, o DUP, teve três líderes nos últimos três meses, com o apoio ao partido diminuindo drasticamente.
A mudança demográfica também desempenha um papel importante: enquanto os protestantes já foram mais numerosos do que os católicos na Irlanda do Norte, o censo de 2021 vai mostrar uma maioria católica na região pela primeira vez quando os resultados forem oficialmente revelados no próximo ano.
“Todas essas coisas conspiram para deixar as pessoas com muito medo, porque elas presumem que talvez seja o fim do jogo para os unionistas”, opinou Gareth Mulvenna, um especialista nos Troubles e nos paramilitares unionistas.
“O unionismo e o legalismo são sempre reativos e defensivos, mas agora o unionismo está tendo que reagir a diferentes forças fora de seu controle”, continuou.
Meses atrás, enquanto a Irlanda do Norte se preparava para comemorar o centenário de sua fundação, as tensões atingiram o auge. Manifestantes em bairros principalmente legalistas foram às ruas, jogando bombas de gasolina nos policiais e incendiando um ônibus, levando a região, mais uma vez, às manchetes internacionais.
Quando as comunidades legalistas e nacionalistas entraram em confronto ao longo de uma chamada linha de paz – um muro fechado que separa as duas áreas –, a região se preparou para a violência contínua. Mas a desordem não veio.
Agora, com o clímax da temporada de marchas legalistas se aproximando, aqueles que conhecem de perto o legado de violência da Irlanda do Norte estão mais uma vez pedindo calma.
Billy Hutchinson, um vereador do Partido Unionista Progressivo, diz que não há apetite para um retorno aos dias sombrios do passado. Hutchinson é um ex-paramilitar que passou 15 anos na prisão por seu envolvimento nos assassinatos sectários de dois meios-irmãos católicos durante os Troubles.
Ele não acha que a sociedade da Irlanda do Norte voltou ao ponto em que estava durante os protestos da escola Holy Cross, mas adverte que “não é preciso muito para acender o fogo”.
O vereador foi um dos que tentaram dissipar as tensões na escola Holy Cross em 2001. Em sua autobiografia lançada em 2020, ele escreveu que, embora as queixas dos legalistas protestantes fossem legítimas, elas também eram “totalmente contraproducentes – e pintaram o legalismo como retrógrado e desagradável aos olhos do mundo”.
Mas a raiz dessas queixas não mudou, disse ele: muitos legalistas pró-britânicos se sentem “sob cerco” ainda hoje. Os jovens legalistas, em particular, “não têm interesse na sociedade”.
“O que precisamos fazer é construir a confiança nessa comunidade de que eles ainda são britânicos. E eles ficarão até mesmo se algum tipo de pesquisa disser que não são”, afirmou.
Hutchinson está falando sobre uma potencial pesquisa na fronteira sobre a unificação irlandesa – algo que ele vê como uma ameaça maior ao unionismo do que o próprio Protocolo da Irlanda do Norte sob o acordo do Brexit.
Uma cláusula nos Acordos de Paz de 1998 diz que uma consulta pública sobre a unificação irlandesa deve ser realizada se parecer provável que a maioria dos eleitores a apoiaria. O consentimento para uma Irlanda unida precisaria ser dado simultaneamente na Irlanda do Norte e na República da Irlanda, de acordo com o Acordo da Sexta-feira Santa.
Embora Hutchinson não acredite que uma Irlanda unida seja inevitável, ele, como muitos unionistas que desejam que a Irlanda do Norte permaneça parte do Reino Unido, sente que a consulta é um ataque à sua identidade. “Há uma guerra cultural em andamento”, afirmou.
Conor Maskey, vereador do Sinn Fein para a área eleitoral do Castelo de Belfast, uma das partes mais heterogêneas da cidade, entende que os unionistas acham que falar de uma pesquisa de fronteira é “inquietante”, mas sente que é sua responsabilidade explicar “como isso não vai mudar em uma direção negativa, mas positiva”.
Além disso, é “responsabilidade dos unionistas convencer alguém como eu de que não deveríamos ter uma pesquisa na fronteira”, falou. Segundo ele, se uma pesquisa for realizada e o resultado favorecer uma Irlanda unida, os direitos dos unionistas seriam protegidos.
Mas, nesses tempos incertos, muitos legalistas sentem que esses direitos já estão sendo corroídos, apontando para a remoção de uma série de fogueiras tradicionais erguidas antes de 12 de julho.
Emma Shaw, uma ativista unionista e estudante de mestrado em política educacional, diz que parte do problema decorre de percepções gerais sobre o legalismo. “A palavra legalista é sempre retratada sob uma luz muito negativa”, disse. “É muito frustrante para mim, porque é sempre tipo, ‘legalistas, ou canalhas, eles estão no passado, não querem que a sociedade avance’. Isso está muitíssimo longe da verdade, especialmente no que diz respeito às mulheres”.
Shaw diz que a comunidade trabalha com as autoridades locais há anos para garantir a segurança das fogueiras, incluindo como torná-las mais ecologicamente corretas.
“Mas, à medida que o conselho municipal muda de unionista para um enfoque mais nacionalista, parece que só dizem para nós darmos cada vez mais, e não temos mais nada para dar”, lamentou.

Embora Shaw diga que as fogueiras são parte integrante da cultura de sua comunidade, ela sabe que também podem ser usadas como uma forma de protesto político: a queima de cartazes eleitorais, efígies e bandeiras é uma cena comum.
O ativista legalista Joel Keys disse que não gosta de ver cartazes e bandeiras queimando nas fogueiras. Ao mesmo tempo, acrescenta que se houvesse uma imagem que ele colocaria ali, seria a do primeiro-ministro britânico Boris Johnson, “porque ele nos traiu”.
Keys entende que seus oponentes políticos querem unir a Irlanda. “Eu sei que eles (Sinn Féin) não estão nisso pelos meus interesses, eles são muito abertos sobre esse fato e sobre o que lhes interessa.
Mas o Boris finge estar do nosso lado, finge ser um dos nossos amigos. E você só pode ser traído por pessoas que afirmam ser seus amigos; você só pode ser traído por pessoas que afirmam estar do seu lado”, disse.
O jovem de 19 anos sente que sua comunidade está ameaçada. Ele assumiu como missão encorajar mais jovens legalistas a se envolverem na política, explicando a eles que “legisladores são pessoas que trabalham para você”.
“Acho que muitas pessoas precisam colocar na cabeça que a mudança não está incrivelmente fora de seu alcance”, afirmou.
“Boris finge estar do nosso lado. Você só pode ser traído por pessoas que afirmam estar do seu lado”
Joel Keys, ativista legalista
Em um relatório recente do Fórum da Juventude da Irlanda do Norte (NIYF), a saúde mental era a maior preocupação para os jovens, ao invés de qualquer outra questão social ou política.
Quando se trata de questões de religião, cultura e identidade, quase metade (45%) dos entrevistados se identificam como irlandeses do norte; uma esmagadora maioria (82%) dos entrevistados disse que a formação religiosa de um indivíduo não tinha impacto sobre como eles se sentiriam a respeito dele.
Os jovens trabalhadores do NIYF Martin Kelly e Lauren McAreavey dizem que a narrativa “nós e eles” ainda existe em algumas comunidades, mas que os jovens estão se afastando dela, quebrando barreiras para trabalharem juntos nas questões que estão bem à sua porta.
“Há muitas mais pessoas que não querem que o tempo volte a ser como era do que as pessoas que querem”, disse a ex-aluna da Holy Cross, cujo parceiro é protestante.
Para ela, o passado é simples: “Você se lembra dele, mas segue em frente”.
(Texto traduzido. Leia o original em inglês aqui)