Opinião: O medo persistente de saber que minha família palestina pode ser morta a qualquer momento

Nossa família em Gaza recebeu um trote de evacuação ontem à noite, o que é profundamente angustiante

Hani Almadhoun
Palestinos procuram vítimas sob escombros de casas destruídas por ataque israelense em Rafah, no sul da Faixa de Gaza  • Reuters/Ibraheem Abu Mustafa
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Tudo o que ocupou os meus pensamentos desde o dia 7 de outubro, tudo o que ouço, vejo, sonho e sinto – é o que está acontecendo na Faixa de Gaza.

Sabendo que minha família pode ser morta a qualquer momento, vivo com o medo persistente de que qualquer som que meu telefone faça, seja a notícia que mais temo.

Sou um palestino-norte-americano que vive em Annandale, Virgínia, mas meus pais e familiares estão presos na sitiada Faixa de Gaza. Neste mundo de escuridão perpétua – desprovido de eletricidade, combustível e internet em grande parte – a minha família também desapareceu de vista.

Na região norte de Gaza, mais de 20 membros da minha família procuram abrigo sob o refúgio de uma escada – um escudo frágil contra a tempestade implacável e impiedosa de ataques aéreos.

“Eles andam com cautela, evitando as janelas e as ruas desoladas onde o cheiro de morte, fogo e caos paira no ar”, disse Hani Almadhoun.

Quando ambulâncias, bombeiros, jornalistas e funcionários da ONU se encontram privados de proteção, só podemos imaginar a situação difícil de civis, como minha família e queridos amigos, em Gaza esta semana.

É difícil exagerar no impacto negativo desta guerra em Gaza sobre minha família: os hospitais ficam lotados para mortos e feridos, obrigando os hospitais locais a utilizarem caminhões de sorvetes para preservar os corpos.

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Gatos famintos vagam pelas ruas de Gaza clamando por comida.

E se não bastasse, a nossa família em Gaza recebeu um trote de evacuação ontem à noite. É profundamente angustiante ouvir que, nesses tempos difíceis, alguns estão fazendo trotes aos palestinos em Gaza, pressionando-os a evacuar de suas casas no meio da noite, sob o pretexto de bombardeios iminentes.

Isso causou um imenso pânico e medo em muitas famílias. Essas ações são cruéis e desnecessárias, especialmente quando milhares de casas já foram destruídas em Gaza.

Certa vez, comemoramos aniversários juntos, comemos juntos, rimos e criamos lembranças queridas. Hoje, essas memórias estão em ruínas, assim como os lugares que já foram nossos santuários.

Para minha família, como para inúmeras outras, é negado o simples privilégio de relembrar dias melhores enquanto enfrentam outro dia de julgamento.

A minha mãe, de 71 anos, rodeada pela maioria de seus filhos e descendentes, segura-se ao vínculo familiar que os mantém unidos enquanto lutam com a diminuição do abastecimento de água e com o manto opressivo da escuridão que uma acompanha vida sem eletricidade.

A situação peculiar dela os coloca no que é considerado, ironicamente, a área de evacuação do norte de Gaza, embora a fuga continua sendo uma tarefa arriscada para muitos.

As razões da incapacidade de fugir são multifacetadas. A escassez de combustível faz com que qualquer veículo que circule em Gaza neste momento – muito menos um carro com espaço suficiente para acomodar 20 pessoas – seja alvo de suspeita.

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E se arriscar para o sul os levaria a um território desconhecido, longe dos amigos, da família e da reconfortante familiaridade do lar. Em uma região onde a geografia pode determinar a vida ou a morte, essa é uma aposta que poucos estão dispostos a fazer.

Em um mundo onde nem mesmo os meus colegas da ONU têm segurança garantida, o enigma enfrentado pelos civis se torna um paradoxo inquietante. Como se espera que palestinos comuns, como a minha família, encontrem refúgio quando os limites entre o refúgio e o perigo se confundem com o passar dos dias?

As lutas do presente servem como testemunho do espírito inflexível do povo palestino, uma resiliência que distorce a força das memórias dolorosas de 1948, quando os meus avós fugiram para salvar as próprias vidas, e de 1967, quando os nossos pais procuraram abrigo em Gaza.

Foram tempos de adversidades semelhantes, tempos em que os nossos antepassados resistiram e sobreviveram. A questão que permanece, no entanto, é por que os filhos e netos deles  deveriam ser condenados a reviver esse ciclo incessante de sofrimento?

Olhando para trás, naqueles dias, desenvolvi uma compreensão mais profunda dos meus familiares, que viveram a Nakba de 1948 – e a incerteza, as injustiças, a impotência e a traição. Sentimentos instalados em uma nova geração de palestinos que apenas cresceram ouvindo histórias da sua limpeza étnica.

Agora, os palestinos em Gaza estão fazendo uma viagem ao passado, com a percepção de que, na marcha em direção à segurança, estão deixando para trás lugares que talvez nunca mais vejam.

A dor da perda e da desapropriação ficou gravada na nossa memória coletiva, servindo como um lembrete sombrio e persistente da nossa história compartilhada.

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No início desta semana, recebi uma mensagem de Amro, meu sobrinho de 29 anos. Amro gosta da Faixa de Gaza e fica lá, apesar de ter oportunidades de viajar e viver fora dela.

Amro me fez prometer que, se ele sobreviver de alguma forma, eu deveria ajudá-lo a encontrar uma maneira de deixar Gaza para sempre. Isso foi difícil para mim. Amro adorava essa cidade costeira do Mediterrâneo, até à guerra mais recente.

Esse coluna serve como um apelo sincero à compreensão, compaixão e, acima de tudo, um apelo urgente à paz e à esperança de um futuro melhor.

Infelizmente, dada a duração implacável da crise em Gaza, as perspectivas para tal futuro parecem mais ilusórias a cada segundo.

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