Tradição de meninas afegãs que vivem como meninos pode estar ameaçada
No Afeganistão, viver como um menino antes da puberdade pode garantir mais liberdade; as 'bacha posh' adotam o estilo masculino com aval das famílias, mas a tradição corre riscos com o Talibã no país
A vida para mulheres e meninas era medonha na última vez que o Talibã governou o Afeganistão, depois da Guerra Soviético-Afegã na década de 1980.
Como descreveu um relatório do Serviço de Pesquisa do Congresso dos EUA, “o Talibã proibiu as mulheres de trabalhar, frequentar a escola depois dos 8 anos e aparecer em público sem um parente de sangue do sexo masculino e sem usar burca. As mulheres acusadas de quebrar essas ou outras restrições sofreram punições corporais ou capitais severas, muitas vezes publicamente”.
O Afeganistão normalmente fica sempre perto do topo das listas dos piores lugares no mundo para mulheres e meninas, mas algumas coisas melhoraram depois da invasão dos Estados Unidos em 2001.
A taxa de mortalidade materna diminuiu – embora ainda seja alarmantemente alta. Mais mulheres ocuparam empregos como médicas, políticas e jornalistas.
E mais meninas foram educadas: o Banco Mundial mostrou que quase nenhuma menina recebia educação primária em 2000, mas mais de 85% frequentava a escola em 2012. Algumas até fizeram parte de uma equipe de robótica.
Mesmo assim, um relatório do Unicef de 2018 disse que uma em cada três meninas afegãs se casa antes dos 18 anos. Apenas 19% das meninas com menos de 15 anos são alfabetizadas.
Além disso, 60% das 3,7 milhões de crianças fora do sistema de ensino naquele ano eram meninas – e sempre foi perigoso para elas ir à escola. Para algumas meninas, historicamente existe um caminho para viver como um menino antes da puberdade. Elas são chamadas de "bacha posh".
O que são as 'bacha posh'
Bacha posh, que em dari significa menina “vestida de menino”, é uma tradição antiga anterior ao Talibã, na qual a família designa uma menina para viver como menino. Isso pode dar a ela a liberdade de um menino (como educação, prática de esportes e o direito de ficar ao ar livre sozinha) ou impor a ela os deveres de menino, como trabalhar.
Alguns pais designam uma bacha posh se a família não tem filhos homens, para aliviar o que pode ser considerado vergonha e vulnerabilidade (a de não ter um filho para proteger a família ou ganhar dinheiro com isso) na esperança de que a mudança faça com que o próximo bebê nascido seja um menino.
Espera-se que as meninas voltem ao feminino na puberdade para se tornarem esposas e mães, queiram ou não – e muitas não querem, de acordo com Jenny Nordberg, autora de um livro sobre bacha posh chamado “The Underground Girls of Kabul” (“As Garotas Subterrâneas de Cabul”, sem edição no Brasil).
Para Nordberg, é uma tradição enraizada na desigualdade. No entanto, é uma das únicas maneiras pelas quais algumas meninas conseguem sentir o gostinho da liberdade.
Trata-se de uma prática que será cada vez mais arriscada, mas ao mesmo tempo talvez ainda mais relevante, ao vermos que mulheres estão enfrentando discriminação mesmo com a promessa do Talibã de que isso não aconteceria.
A CNN perguntou a Nordberg o que pode acontecer com as meninas no Afeganistão, incluindo as adeptas da bacha posh.

Leia a entrevista:
CNN: Qual era a situação das meninas no Afeganistão antes da invasão dos Estados Unidos em 2001?
Jenny Nordberg: A maioria não ia à escola. Elas eram analfabetas. Havia algumas escolas secretas para meninas, ou seja, basicamente um grupo de estudo improvisado. Mulheres ou irmãs mais velhas que tiveram alguma educação com os russos ensinavam suas irmãs mais novas ou filhas.
Elas diziam que ensinavam o Alcorão, e de fato tentavam ensinar outras coisas como matemática ou o idioma.
Uma menina era uma fraqueza para a família porque ela não podia defendê-la como um menino. Crescer como menina significava ser preparada para uma única coisa: casar-se com outra família.
Para serem um bom material para o casamento, seus movimentos eram muito limitados. As meninas não deviam brincar muito. Não deviam sair muito. Certamente não deviam ler um livro, não praticar esportes, nem falar alto demais.
Era preciso ser muito recatada, muitíssimo quieta, sempre baixando o olhar. Mesmo pais muito liberais, educados e progressistas não queriam que suas filhas fossem sequestradas pelo Talibã ou enfrentassem qualquer perigo. Era uma forma de protegê-las.
Uma vez que a menina começa a menstruar, quando pode conceber e engravidar, ela se casa e passa a ser propriedade não mais de seu pai, mas do marido. Pode ser com um homem que ela não conheceu ou que viu apenas uma vez e com quem nunca falou.
CNN: Como as coisas mudaram nos 20 anos em que os norte-americanos estiveram no Afeganistão?
Nordberg: Houve uma nova geração principalmente urbana, em centros de grandes cidades como Cabul, uma geração inteira que foi para a escola e a universidade. Eles tinham grandes planos para si mesmos, tanto homens quanto mulheres têm smartphones.
Eles sabem o que está acontecendo no resto do mundo. São aqueles que, na fantasia de uma nova democracia em funcionamento no Afeganistão, iriam assumir o controle do estado e empurrar o país para a frente.
Os norte-americanos estavam tentando deixar as pessoas mais ambiciosas, talentosas e espirituosas para governar seu próprio país. O que é uma espécie de fantasia colonialista.
CNN: O Talibã disse que protegerá os direitos das mulheres “dentro dos limites do Islã”. Isso lhe dá alguma esperança?
Nordberg: Essa declaração não significa nada porque estará sujeita a interpretação. Não há correlação entre o que consideramos direitos razoáveis para as mulheres e o que eles consideram direitos razoáveis para as mulheres.
Oprimir mulheres não é uma história paralela: é a história principal. Faz parte da estratégia de recrutamento. As mulheres só são úteis para ter filhos. E elas precisam ser controladas e mantidas num papel mínimo, são muito diminuídas.
Uma mulher que estuda tem muitas ideias. Talvez ela queira tomar algumas de suas próprias decisões sobre seu corpo ou sobre quando deve ter filhos, se deve se casar. Eles não querem nada disso. Querem ter todo o poder sobre as mulheres.
Veja os últimos dias. Por que as pessoas estariam tão desesperadas para sair se acreditassem que o Talibã havia assumido uma versão mais branda? Por que as mulheres iriam se esconder, com medo de suas vidas, se pensassem que havia alguma chance de negociação ou conversa com o Talibã sobre os direitos humanos das mulheres?
Sem outra invasão, quem vai impedi-los? O Talibã agora assumiu o controle de forma rápida, brutal e devastadora. Não têm razão para se comprometer com algo. Por que eles cederiam em qualquer coisa?
A credibilidade deles, em minha opinião, é zero para realmente garantir os direitos humanos básicos às mulheres e meninas.
CNN: O que vai acontecer com as mulheres que foram educadas e a quem foi prometido um futuro melhor?
Nordberg: As mulheres que são úteis de alguma maneira poderão continuar trabalhando, mas não terão direitos próprios. Uma cirurgiã está sob o comando de seu marido ou pai. E ela precisará obedecer a uma sociedade e às regras do Talibã. Eles vão exibir algumas mulheres por algumas semanas para dizer que está tudo bem e completamente normal.
Algo do tipo: ‘Demos um jeito. Não se preocupem’. E então, quando os olhos do mundo se afastarem, eles vão com tudo. Mas vão manter algumas mulheres simbólicas para exibirem como figuras públicas. O resto será completamente brutalizado.
Como a CNN noticiou recentemente, "enquanto os líderes do Talibã dizem à mídia internacional que "não querem que as mulheres sejam vítimas", uma realidade mais sinistra está se revelando no local. Meninas são forçadas a se casar, bancárias deixam seus empregos e casas de ativistas são invadidas em uma mensagem clara de que as liberdades dos últimos 20 anos estão chegando ao fim.
CNN: Quem são as bacha posh?
Nordberg: Uma bacha posh é uma garota que vive como um menino, quase como um terceiro gênero.
Para alcançar o que consideramos alguns direitos humanos básicos, uma menina pode vestir uma calça e uma camisa, cortar o cabelo e se passar por um menino.
Isso aumentará a amplitude de movimento dela. Ela não precisa ser mantida dentro de casa. Pode praticar esportes. Pode acompanhar sua mãe ou fazer pequenas tarefas na rua.
Ela verá mais do mundo fora de casa, basicamente. Em áreas onde a educação é oferecida apenas a meninos, ela pode ter educação e ir à escola com segurança, se for perigoso para uma menina viajar ou ir a pé para a escola.
É uma tradição e um costume antigos que são basicamente um sinal de uma sociedade profundamente disfuncional e segregada, onde mulheres e meninas são cidadãs de segunda classe.
Se as meninas tivessem direitos, não haveria necessidade de fingir ser o gênero mais privilegiado. É uma sociedade onde meninos e homens detêm quase todos os direitos. Em uma sociedade extremamente segregada, sempre haverá quem tente passar para o outro lado.
CNN: Por que algumas garotas se tornam bacha posh?
Nordberg: São vários motivos. Se a família não tem um filho, uma filha não só é percebida como fraca como de fato é fraca, porque não haverá ninguém para defender a família e apoiar os pais idosos.
Pode ser que as pessoas saibam que você tem uma bacha posh em vez de um filho real, mas ainda é considerado melhor do que ter apenas filhas. É visto com bons olhos pela maioria dos afegãos.
Também pode ser que, se a família for pobre, uma bacha posh pode ser mão-de-obra, trabalhando para o negócio da família ou fora de casa como balconista, trazendo algum dinheiro se o pai não puder trabalhar ou a mãe for viúva.
Também pode ser que os pais realmente queiram que uma menina receba educação. Se você tem dois filhos e uma filha, veste a menina como os meninos e manda os três para a escola.
CNN: É libertador para as garotas viverem como bacha posh?
Nordberg: Depende. É um fardo? É para que você possa trabalhar e trazer dinheiro para a família? Ou é um privilégio quando você tem direito a uma educação ou alguma liberdade de movimento ou pode andar de bicicleta ou viajar com seu pai?
Pode ser um ou ambos. É muito complicado psicologicamente para cada bacha posh individualmente. E isso depende principalmente de dois fatores. Qual foi a razão de você ser uma bacha posh, e por quanto tempo isso durou?
CNN: A prática ainda será permitida sob o governo do Talibã?
Nordberg: Isso existia no Afeganistão muito, muito antes de o Talibã chegar ao poder, e existirá até o dia em que as mulheres tiverem seus próprios direitos humanos. Dito isso, haverá uma necessidade maior de se esconder, uma necessidade maior de se disfarçar quando se quer fazer certas coisas.
Mas também será mais perigoso fazer isso, porque acredito que o Talibã não aprova a prática. Sempre foi arriscado e será mais perigoso sob um regime mais severo. Seria como zombar do Talibã e da opinião deles sobre as mulheres.

CNN: Quais são nossas obrigações morais para com as meninas e mulheres do Afeganistão?
Nordberg: Hesito até mesmo em usar o termo “obrigação moral”. Será que ainda temos o direito de falar sobre isso? Na minha opinião, só precisávamos tirar o máximo de pessoas possível do país. O que foi feito não foi suficiente, nem de longe.
Cada embaixador, qualquer país que esteve envolvido nesse fracasso de uma geração, deveria ter emitido vistos de emergência e aberto suas fronteiras para as pessoas que colocamos em um perigo imenso ao promovê-las, desenvolvê-las, encorajá-las e educá-las. Este é o nosso povo e agora fazemos parte desse país, assim como eles fazem parte de nós.
Nós encorajamos essas mulheres a estudar, conseguir uma profissão, escolher seu próprio caminho, tornar-se mais como nós, construir seu próprio país. E agora elas estão em extremo perigo. São jornalistas, acadêmicas, professoras, universitárias, artistas, políticas.
As retiradas por transporte aéreo acabaram, mas outros esforços continuarão. Tirem as pessoas de lá e façam isso agora porque o portão está se fechando para um país que será horrível, horrível para as mulheres por muitos anos.
Lisa Selin Davis é a autora de “TOMBOY: The Surprising History and Future of Girls Who Dare to Be Different” (“Tomboy: A história surpreendente e o futuro das meninas que ousam ser diferentes”, sem edição no Brasil)
Leia mais notícias do Brasil e do mundo na CNN.
(Texto traduzido. Clique aqui para ler o original em inglês)