Os bastidores do Central, restaurante peruano eleito o melhor do mundo
Endereço em Lima serve mais do que menus degustação: é uma verdadeira mola propulsora da biodiversidade e dos ingredientes peruanos a nível global
O Peru é um destino que tem a gastronomia no topo de suas virtudes. Viajar ao país sul-americano é testemunhar o entrelaçamento de uma rica história, notadamente dos Incas, com tradições culinárias guiadas pela diversidade de ingredientes. Em Lima, essa pujante combinação mostra todas as suas facetas.
A capital foi a minha porta de entrada para descobertas deliciosas na 10ª temporada do CNN Viagem & Gastronomia. No bairro de Barranco, que desponta como o pedaço mais descolado e charmoso da cidade, um endereço já entrou para a história: o Central, liderado pelo chef Virgilio Martínez.
O restaurante foi eleito o melhor do mundo em 2023 pelo The World's 50 Best Restaurants, fato que o colocou na lista dos "melhores dos melhores", posto dividido com outros nomes de peso, como os dinamarqueses Geranium e Noma, o estadunidense The French Laundry, e o italiano Osteria Francescana.
Foi a primeira vez na história da premiação que um restaurante da América Latina encabeçou o ranking, abrindo caminho para que outros locais, como o Maido, também chegassem na liderança.
Assim, iniciei a jornada pelo Peru por meio de uma refeição no Central. Para muitos, o título de melhor do mundo pode ser uma prisão. Depois do almoço, constatei que a distinção é uma liberdade para Virgilio.
Através das garfadas e dos goles pude compreender sensorialmente os ecossistemas do país e o meticuloso trabalho de comunidades locais. Além dos pratos, fui servida com estudos e muita genialidade. Saí satisfeita, mas também muito instigada.
“Prefiro ser o melhor restaurante para trabalhar. Ser o melhor lugar, onde temos o melhor grupo de trabalho", conta Virgilio. Durante o nosso encontro, suas palavras ecoaram o momento em que subiu ao palco para receber o prêmio do 50 Best. Trabalho em equipe, transparência e consistência foram termos usados no agradecimento.
Os bastidores do Central
O restaurante nasceu em 2008 com a proposta de oferecer uma experiência fine dining com ingredientes e técnicas do Peru. Tomou forma e se ajustou ao longo do tempo, até que se estabeleceu em um minicomplexo em 2018.
Trata-se da Casa Tupac, no coração de Barranco, que abriga ainda um jardim, um centro de estudos e o Kjolle, restaurante de Pia León, eleita a melhor chef do mundo em 2021 e parceira de Virgilio na cozinha e no amor.
O design sofisticado e contemporâneo do restaurante se destaca logo de cara, mas nada é exagerado. Os traços revelam madeira, pedras, cerâmicas artesanais e concreto aparente. O ambiente é inundado por iluminação natural e rodeado de vidros que enquadram o jardim.
Uma mesa de mármore nos dá as boas-vindas, a qual revela uma amostra do que vamos consumir alguns instantes depois. Aqui estão espalhados ingredientes das mais diversas cores, texturas e formas, muitos deles uma novidade até para os paladares mais viajados.
A cozinha aberta e envidraçada funciona como uma grande orquestra. Virgilio e equipe trabalham com precisão e calma. “Falamos de uma cozinha que faça sentido. Uma cozinha que buscamos a transcendência. Para isso, temos que definir um propósito. Por isso temos um trabalho de investigação e de formação de comunidades", explica o chef.
Fazemos uma cozinha local que acaba sendo muito global. São muitos níveis, com ecossistemas e altitudes. Nos sentimos muito orgulhosos e realizados com a direção que estamos tomando, que tem um sentido e que marca um caminho
As etapas do menu são setorizadas e nos levam por diferentes ecossistemas, todas pautadas por altitudes, que vão desde abaixo do Oceano Pacífico até as alturas extremas dos Andes. Passeios pelos vales do Peru e pela Amazônia também estão garantidos.
Mar, deserto e altitudes extremas
A casa serve atualmente um menu degustação de 13 etapas com 32 preparações. Batizado de "Mundo en Desnivel", pode ser contemplado em cerca de três horas, período em que saboreamos itens que vão desde caranguejo e camarão até algas e diferentes tipos de milho. Sai por 1.630 soles (cerca de R$ 2.500), com harmonização à parte por 684 soles (R$ 1.050).
A etapa do deserto, por exemplo, chega à mesa com abóbora, abacates e camarões provenientes do degelo das cordilheiras. Antes de entrarmos no ecossistema marinho, somos presenteados com um coquetel que tem o gosto do mar, um destilado de plantas e algas com toque de frescor por meio de pepino e azeite com extrato de salicórnia. É uma verdadeira gastronomia líquida.
Depois, somos levados a cerca de 10 metros de profundidade. "Usamos a cabeça do caranguejo e fermentamos algas para chegar à uma massa", conta o chef. É puro umami. É como se eu tivesse mergulhado nas águas do Pacífico.
Alguns passos depois e chegamos aos picos dos Andes, a mais de 4.200 metros de altitude. À nossa frente são alocados diferentes tipos de milho, com as mais diversas texturas e cores. A finalização se dá por meio do cushuro, uma alga esférica e gelatinosa valorizada desde os tempos ancestrais. É apelidada de "caviar dos Andes".
Processo criativo

Para chegar a todos esses resultados, o processo criativo importa - e muito. Mas como ele é feito? Pesquisa é a palavra-chave.
"Dependemos muito da Mater Iniciativa. É um centro de investigação e interpretação que trabalha no campo da antropologia, humanidades, arte e cultura. Essas informações são importantíssimas porque norteiam a nossa cozinha e nossos processos. Ao final, o que trabalhamos na cozinha é consequência de um trabalho multidisciplinar", revela Virgilio.
O projeto reúne uma rede de antropólogos, botânicos e linguistas que rodam o país e pesquisam ingredientes nativos e indígenas. As descobertas servem de base para os menus tanto do Central quanto para o Kjolle e para o Mil Centro, no Vale Sagrado.
O interessante é que a Mater já possui uma subdivisão, a Mater Líquidos. "São as bebidas que fazemos aqui. Se tem uma bebida marinha, ela combina com um prato marinho", diz o chef.
Acredito que vivemos um momento em que o mundo líquido acompanha o menu e ajuda a contar uma história. Então há uma sinergia
Antes de uma refeição no Central ou no Kjolle, vale sentar no balcão e apreciar toda essa alquimia que transforma matérias-primas peruanas em goles. Outra experiência na Casa Tupac é a imersão no Theobromas Lab, onde mergulhamos no mundo do cacau amazônico por meio de análises e degustações.
No fim, o gostinho que fica é o de admiração. Não somente pelo trabalho feito com muito esmero, mas pela representatividade do território peruano e de seu povo. O menu degustação é mais do que uma série de etapas: é um resumo do trabalho de Virgilio e de Pia, que serve como uma mola propulsora da biodiversidade sul-americana a nível global.
E o que vem depois do título de melhor restaurante do mundo? "Não estamos aqui para ser número um, queremos fazer mais coisas", crava Virgilio.
Central Restaurante
Av. Pedro de Osma 301, Barranco, Lima, Peru / Tel.: +51 1 242-8515 / Horário de funcionamento: segunda a sábado, das 12h45 às 12h30 e das 19h às 20h30 / Reservas e experiências via site.