Conheça cidade na Espanha onde é tradição moradores se encharcarem de vinho

Todo dia 29 de junho, centenas se reúnem no município de Haro para celebrar o vinho pelo qual a região é famosa

Isabelle Rodney, da CNN
Batalha do Vinho, espanha
A “Batalla del Vino”, ou Batalha do Vinho, acontece todos os anos na cidade espanhola de Haro, na região de La Rioja  • Manuel Balles/NurPhoto via Getty Images
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Uma taça de vinho da Borgonha durante o jantar. Um Chardonnay gelado ao pôr do sol. Um espumante na celebração de um casamento. Normalmente, uma taça de vinho é algo para ser apreciado, saboreado devagar. Exceto em uma pequena e tranquila cidade no norte da Espanha, onde o vinho vira munição.

Todo dia 29 de junho, centenas de moradores se reúnem no município de Haro para celebrar o vinho pelo qual a região de La Rioja é famosa — festa que culmina na Batalla del Vino, que significa "Batalha do Vinho" na tradução literal.

O que começou como uma procissão religiosa até a Ermida de San Felices, um santuário histórico no alto de uma colina, evoluiu para uma vibrante festa cultural: milhares de pessoas se ensopam de vinho tinto, usando pistolas d’água, baldes e garrafas.

O evento, caótico e animado, atrai turistas de toda parte, ansiosos para mergulhar no clima festivo. Mas, apesar dos litros e litros de vinho lançados pelos ares, autoridades locais estão preocupadas com visitantes que confundem a tradição com uma desculpa para exagerar na bebida.

“Não podemos transformar isso em apenas mais uma festa de bebedeira”, disse José Luis Pérez Pastor, ministro de cultura, turismo, esportes e juventude de La Rioja, à CNN internacional.

A programação começa às 7h30 da manhã, quando o prefeito de Haro e membros da Irmandade de San Felices lideram os peregrinos até os penhascos de Bilibio, onde fica a Ermida.

Depois de uma missa celebrada no local, um foguete anuncia o início da batalha. Vestidos de branco da cabeça aos pés, com lenços vermelhos no pescoço, os participantes começam a se molhar mutuamente até ficarem tingidos de roxo.

"Batismos de vinho"

Embora hoje seja visto como um festival alegre e inusitado, o evento é profundamente ligado à tradição, à religiosidade e ao folclore local.

Reza a lenda que tudo começou no século VI, quando peregrinos homenageavam São Felices, padroeiro de Haro, visitando as cavernas onde ele foi enterrado.

Com o tempo, essas peregrinações deram lugar a celebrações mais animadas, com os chamados “batismos de vinho”, que evoluíram até se tornarem as batalhas que se vê hoje.

Outra versão conta que, no século XII, uma disputa de terras entre Haro e a cidade vizinha de Miranda de Ebro levou os moradores a fazer caminhadas periódicas para marcar os limites das propriedades. Diz-se que isso durou mais de 400 anos — até que o costume virou bagunça, e os dois lados começaram a jogar vinho uns nos outros.

As regras estão descritas no site oficial da Batalla del Vino: o objetivo é manchar o vizinho de vinho, deixando-o mais escuro do que o "Pendón de Haro", uma bandeira tradicional da cidade.

Caminhões-tanque gigantes, cada um com até 15 mil litros de vinho, são disponibilizados pela prefeitura para abastecer os “armamentos” dos foliões.

No total, até 50 mil litros podem ser arremessados a cada edição. Embora pareça um desperdício de bom vinho, o líquido usado na batalha não serve para engarrafamento — é de baixo valor comercial, muitas vezes excedente ou de qualidade inferior.

Depois, o vinho que escorre morro abaixo é absorvido pela terra ou levado pela chuva, segundo as autoridades locais.

Ao meio-dia, após horas de batalha, todos voltam para a Plaza de la Paz, no centro de Haro, onde desfilam ao som de bandas de metais — antes de, como manda a tradição espanhola, seguir para uma arena de touradas e outras atividades.

Ao longo do dia, é comum que os participantes também se reúnam para comer caracoles, um prato típico de caracóis cozidos em molho de tomate e pimentões.

"Surreal e alegre"

Nos últimos anos, o festival ganhou projeção internacional, atraindo visitantes de várias partes do mundo graças a postagens virais nas redes sociais e ao aumento do turismo na região.

Jessica e Eric Smith, um casal de americanos que vive em La Rioja e compartilha o dia a dia da zona rural espanhola para mais de 100 mil seguidores no Instagram, contam que descobriram o evento enquanto colaboravam com uma associação de moradias rurais.

“A batalha em si dura só umas três horas”, conta Eric. “É uma experiência divertida. Você chega lá e está rodeado por milhares de pessoas.”

Para chegar até o alto da colina onde tudo acontece, os participantes vão parte do caminho em ônibus forrados com plástico — uma precaução para evitar estragos na volta.

“O mais legal é que o ônibus para no meio do vinhedo, e você tem que caminhar uns 10 ou 15 minutos morro acima até chegar à batalha”, disse Eric.

É aí que começa a bagunça. “Logo na entrada, uns senhores espanhóis, que claramente fazem isso há anos, estão ali com pulverizadores de mochila cheios de vinho”, contou Jessica. “Você mal entra e já está sendo borrifado. Aí, do nada, surge uma criança e despeja um balde de vinho na sua cabeça.”

“A qualquer momento, alguém pode virar uma garrafa em você”, acrescentou Eric. “O clima da batalha é muito divertido… você nunca sabe o que vai acontecer.”

Jessica disse que o ambiente fez com que se sentisse imediatamente acolhida: “Foi como se eu fosse adotada por um dia”, contou. “É tudo o que a gente ama na cultura espanhola reunido num só lugar — dá pra ter uma amostra disso quando se participa.”

“Fomos pela primeira vez a Haro para a Batalla em 2007 e voltamos todos os anos desde então”, conta Toby Paramor, diretor da Stoke Travel, uma empresa britânica que organiza excursões para o festival. “Foi uma descoberta surreal, alegre e genuína.”

Apesar de empresas como a Stoke oferecerem pacotes que incluem cerveja e vinho para quem quer se aprofundar na experiência de La Rioja, os organizadores locais se preocupam com o risco de perder as raízes culturais.

Para José Luis Pérez Pastor, o festival nasceu “de fé e amizade” — e precisa continuar assim. “Só assim é possível viver uma experiência verdadeiramente transformadora — com respeito e autenticidade”, afirma.

“Não se trata apenas de beber. Assistir à missa é um momento cultural importante, mesmo que não seja pelo lado religioso. É o reflexo de séculos de tradição.”

 

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