Biden terá desafio para tratar de economia na Cúpula das Américas, dizem analistas
EUA buscam reaver espaço econômico perdido para a China, mas com poucas ações concretas
A Cúpula das Américas, um evento que tradicionalmente reúne os líderes dos países do continente americano, começa nesta segunda-feira (6) como parte de um esforço dos Estados Unidos para recuperar uma influência perdida na região.
Na esfera econômica, porém, a tarefa não será fácil. Especialistas consultados pelo CNN Brasil Business esperam um evento com algumas sinalizações e discursos, mas poucos avanços práticos nas relações comerciais entre os países.
Mesmo não fazendo parte do evento, um nome tem papel central na estratégia norte-americana: a China. Se na década de 1990 praticamente todos os países do continente tinham os Estados Unidos como principal parceiro comercial, o cenário é bem diferente atualmente.
Desde o início dos anos 2000, países como Chile, Brasil, Argentina, Peru e Uruguai passaram a ter a China como principal parceiro comercial, levando a uma perda de espaço e influência dos Estados Unidos na região.
Agora, o governo do presidente Joe Biden busca reverter o cenário, mas enfrenta dificuldades tanto pela sinergia menor com as economias da região quanto pelo foco maior em outros problemas e regiões pelo mundo.
O que pode ser discutido na Cúpula das Américas?
Leonardo Trevisan, professor da ESPM, avalia que a função do encontro neste ano é de alguma forma recolocar a agenda latino-americana como um ponto de preocupação nos Estados Unidos.
“Ainda estamos isolados nesse contexto. Os Estados Unidos têm preocupações com Europa, Ucrânia, Ásia. O Atlântico ficou um pouco em segundo plano”, diz.
No caso da China, porém, o movimento foi contrário, com o país se voltando cada vez mais para a região devido a um interesse econômico: garantir o fornecimento de commodities minerais e agrícolas enquanto sua economia crescia intensamente.
O quadro, que o professor chama de crescimento da atenção chinesa em meio a uma desatenção dos Estados Unidos, pôde ser notado no Brasil, por exemplo, que passou a ter a China como principal parceiro comercial.
Enquanto os níveis de importação e exportação com os Estados Unidos se mantiveram constantes, os com a China dispararam. De 1997 a 2021, as importações passaram de um total anual de US$ 1,15 bilhão para US$ 47,6 bilhões. Já as exportações, de US$ 1,087 bilhão para US$ 87,9 bilhões.
Por isso, Trevisan afirma que a cúpula busca chamar a atenção dos próprios Estados Unidos para essa perda de espaço. De um ponto de vista mais concreto, ele espera que o país aborde preocupações com uma presença da China pelo Pacífico, mais especificamente a construção de um porto no Peru para escoar cobre produzido no país e no Chile.
Ele também espera que os Estados Unidos tragam o tema do 5G para a mesa, com um grande interesse de investir na tecnologia na região, inclusive no Brasil.
Mesmo assim, Vinicius Vieira, professor da Faap, afirma que qualquer movimentação nesse sentido ainda é muito incipiente, com os Estados Unidos mais focado nos últimos anos na pandemia e, agora, na guerra entre Rússia e Ucrânia.
Ele acredita que o presidente Joe Biden possa busca algum avanço na agenda de acordos bilaterais com países da região, algo iniciado pelo ex-presidente Barack Obama, mas suspenso durante os anos do ex-presidente Donald Trump, que tinha uma agenda mais protecionista.
Os Estados Unidos não possuem acordos com economias relevantes na América Latina, caso do Brasil e da Argentina, e podem tentar mudar isso.
“Eles querem que o Brasil fique do lado norte-americano em relação à China, e um acordo buscaria garantir essa presença”, afirma.
O professor vê o momento atual da política externa dos Estados Unidos como de atração de aliados, “oferecendo benesses”, como as recentes ofertas de investimento em infraestrutura na Ásia para conter o projeto Cinturão e Rota da China, que busca recriar a famosa “Rota da Seda” investindo em grandes projetos de infraestrutura pelo mundo.
Em 2021, os Estados Unidos chegaram a anunciar um projeto de investimentos em infraestrutura na América Latina, mas desde então não deram mais detalhes ou avanços concretos.
No caso dos países latino-americanos, Vieira considera que seria positivo reduzir uma dependência “excessiva” da China, diminuindo riscos e potenciais pressões do país.
“A nível internacional, a China não deve deixar essa tentativa de reconquistar a América Latina barata. Hoje tem conexões importantes com países na região e planeja vários projetos de infraestrutura”, afirma.
Para ele, as intenções com a Cúpula da América são boas, mas falta uma agenda comercial mais ambiciosa. O tema, acredita, tende a ficar de escanteio.
“A pauta econômica pode surgir em declarações, mas algo concreto é difícil em um momento mais nacionalista, protecionista. Para os latino-americanos, pode representar um avanço para o futuro”.
Vieira diz ser pouco provável que propostas como a da Alca, uma zona de livre comércio envolvendo todo o continente e idealizada pelos próprios Estados Unidos na primeira Cúpula das Américas, avancem, mesmo que sejam apresentadas.
Ele atribui a culpa à tradição dos países do continente de negociar bilateralmente com os Estados Unidos, não de forma regional, e ao esvaziamento de instâncias supranacionais, como a Unasul e o Celacc.
“Pode dar em nada? Sim. Mas do ponto de vista lógico, tem um cenário que os Estados Unidos estão acostumados, pode sair algo dali. Para o Brasil pode ser interessante”, diz.
Daniela Campello, pesquisadora-sênior do Núcleo América do Sul do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), observa que o próprio governo Biden não deixou claro quais serão os temas discutidos na Cúpula das Américas.
A princípio, as prioridades parecem ser os temas de imigração e tráfico de drogas, que tangenciam a economia, mas ela destaca que essas não são prioridades dos países da América Latina no momento.
O discurso do governo é de que há preocupação com o aumento da presença chinesa, mas na prática pouco está sendo feito para se contrapor à China do ponto de vista econômico
Daniela Campello, pesquisadora-sênior do Núcleo América do CEBRI
Ela considera haver uma falta de projetos e discussões sobre como tirar a região da crise econômica atual, e que os acenos recentes do país não incluíram avanços em temas como integração comercial ou investimentos.
“Hoje, a posição é mais reativa do que ativa na América Latina, e a Cúpula das Américas reflete essa falta de ação e prioridade. Foi algo resolvido parece que de última hora. Não sabe quem vai direito, o que vai ser efetivamente discutido”, avalia.
Um tema que pode ganhar espaço, segundo ela, é a chamada regionalização de cadeias de valor, para tentar superar os riscos indicados pela pandemia nas cadeias globais. “Poderia ser um aceno de intenção para a região, trazer empresas para cá, mas, na prática, não é o que se tem visto”.
A pesquisadora espera que o encontro traga mais sinalizações de intenções, mas sem propostas de fato, já que no momento nada indica que elas existem. “O discurso importa, mas a maneira como a Cúpula foi conduzida a enfraqueceu”.
Os desafios dos Estados Unidos
Campello considera que os Estados Unidos chegam na Cúpula das Américas deste ano enfraquecidos após a decisão de não convidar os líderes de Cuba, Nicarágua e Venezuela para o encontro, sediado pelo país.
A decisão acabou irritando o México, segunda maior economia da América Latina, que ameaça não comparecer ao evento.
Ao mesmo tempo, ela avalia que o governo Biden precisou garantir, então, a presença da maior economia, o Brasil, o que levou ao gesto de enviar um representante para convidar o presidente Jair Bolsonaro pessoalmente, mas reduziu a capacidade de pressão do país sobre o governo brasileiro.
Do ponto de vista econômico, ela cita ainda a forte capacidade da China em investir na região, o que os Estados Unidos não têm. “A economia norte-americana é de mercado, com uma visão mais de curto prazo nas empresas, e aí fica difícil competir, falta incentivo do governo para elas irem para a América Latina”.
“A região não deve crescer muito, então fica menos atraente, e fica difícil ter mais presença só com mecanismos de mercado”, pondera.
Ao mesmo tempo, os Estados Unidos não só não têm a mesma sinergia que a China, não demandando exatamente os produtos que os latino-americanos podem fornecer, como também é um competidor desses países no exterior, dificultando acordos.
Leonardo Trevisan espera que o encontro resulte em uma manutenção dos laços e interesses econômicos entre Brasil e Estados Unidos, mas sem avanços concretos devido ao temor de Biden de se associar com Bolsonaro, criticado por integrantes do Partido Democrata.
É difícil para o Biden sustentar na realidade política do seu partido uma ativa aproximação com o presidente Bolsonaro
Leonardo Trevisan, professor da ESPM
No caso dos outros países, ele cita o avanço de líderes à esquerda nas últimas eleições, como no Chile e no Peru, que dificultam um relacionamento mais direto com os Estados Unidos.
Sob essa perspectiva, Vieira avalia que o encontro pode não estar tão enfraquecido considerando que governos mais à direita deverão comparecer em peso, e buscar avanços na relação com a maior economia do mundo.
Entretanto, ele cita dificuldades internas que Biden deve enfrentar se tentar avançar com uma agenda comercial. A primeira é a alta dívida do país, com dificuldades para investir na sua própria infraestrutura, o que limita a capacidade de investimento em outra região.
Há, ainda, o aspecto comercial. “Do ponto de vista doméstico, a América Latina é competidora em vários produtos, e uma aproximação vai contra a demanda lá atual de proteção econômica”, diz.
Nesse sentido, o professor acredita que Biden pode chegar a prometer algum acordo, mas enfrentará forte oposição, em especial em temas como o agrícola, em que muitos estados temem a competição com o Brasil.
“Domesticamente fica difícil desenvolver uma agenda comercial ambiciosa na América Latina”, afirma.