Baleias azuis acabam ‘atropeladas’ nas águas tumultuadas da Patagônia
Animais disputam espaço com barcos e navios em uma rota marítima movimentada; problema coloca futuro da espécie em risco
O corpo gigante da baleia azul estava caído em uma praia rochosa na costa do Pacífico da Patagônia, no extremo sul da América do Sul. O enorme mamífero tinha 14 metros de comprimento e seu corpo esvaziado não dava nenhuma pista visível de como havia morrido.
Frederick Toro Cortes, veterinário da vida selvagem da Universidade Santo Tomás, no Chile, e sua equipe levaram cinco exaustivas horas para realizar uma autópsia sobre os seixos molhados e irregulares. Divididos em três grupos, eles usaram grandes facas de açougueiro para penetrar na espessa camada de gordura e músculo em três pontos-chave do corpo da baleia – a parte superior das costas, a barriga e o crânio.
Sob a pele e a gordura, os pesquisadores encontraram 10 litros de sangue – evidência de sangramento interno – e um hematoma de 80 centímetros na base do coração. A lesão provavelmente resultou de um traumatismo contuso no tórax. As baleias não têm predadores naturais. Toro Cortes suspeitava que a baleia colidiu com uma das crescentes embarcações que trafegam por essas águas.
“A única coisa que pode gerar isso nesses animais é um ataque de navio em alta velocidade”, disse ele.
“É muito difícil uma baleia azul de 14 metros morrer de trauma de uma rocha no meio do mar. Além disso, não há predadores que façam esse tipo de estratégia para caçar baleias juvenis”.
Na mesma semana em que uma equipe de filmagem documentou Toro Cortes conduzindo a autópsia em abril de 2021, como parte da nova série original da CNN “Patagonia: Life on the Edge of the World” [Vida nos Confins do Mundo, em tradução livre], duas outras baleias foram relatadas mortas em águas chilenas. Normalmente, o Chile registra quatro baleias mortas por ano, disse Toro Cortes.
A autópsia confirmou que o mamífero marinho morto era do sexo masculino e tinha 4 anos. As baleias azuis, os maiores animais que já existiram na Terra, podem viver até os 100 anos. Se a jovem baleia tivesse sobrevivido, poderia ter gerado mais de 20 filhotes.
“Com a autópsia, podemos provar que eles estão morrendo”, disse Toro Cortes para a CNN. “Isso nos permite pressionar o governo a regular o tráfego de navios”.
Zona de tráfego intenso
Os fiordes em forma de dedos, baías protegidas e mares internos da costa do Pacífico da Patagônia, no Chile, são importantes áreas de alimentação de verão para as baleias azuis. A água doce rica em nutrientes dos vales de encostas íngremes se mistura com o oceano, criando manchas densas de krill – minúsculos crustáceos que as baleias azuis recolhem aos milhões com suas enormes mandíbulas.
A Comissão Baleeira Internacional identificou a região como uma das 12 com populações de baleias em risco. Desde 2007, a comissão registrou pelo menos 1.200 colisões entre navios e baleias em todo o mundo. No entanto, para cada acidente observado e relatado, haverá muitos outros completamente despercebidos.
Entender quantas baleias são mortas por navios e o que isso significa para sua conservação é um desafio, mas alguns pesquisadores acham que esses encontros fatais podem explicar por que o número de baleias azuis não se recuperou totalmente da dizimação pela caça comercial.
“As pessoas não percebem o quanto isso é um problema global. Esses animais carismáticos – todo mundo adora baleias – na verdade se tornaram o animal atropelado do oceano”, disse Susannah Buchan, oceanógrafa da Universidade de Concepción, no Chile.
Nos mares internos da Patagônia chilena, os barcos ligados à criação industrial de salmão representam uma grande ameaça. O salmão não é nativo do Hemisfério Sul, mas as ricas condições da água imitam as encontradas na costa da Escócia e da Noruega. O Chile se tornou o segundo maior produtor mundial de salmão de viveiro e o maior exportador para os Estados Unidos.
“Acho que tivemos essa imagem da Patagônia, e é como esse vasto deserto, talvez em terra, com certeza. Mas o ambiente marinho é fortemente industrializado devido à criação de salmão”, disse Buchan.
“E isso significa que há um tráfego enorme de grandes barcaças que transportam o salmão que foi colhido ou barcaças que transportam os estágios larvais, ou antibióticos ou… comida para o salmão em uma área bem estreita.”
Medidas que podem funcionar ao longo de uma costa aberta – como mudar as rotas de navegação – não funcionam com a geografia das ilhas e enseadas.
Usando rastreadores de satélite colocados em 14 baleias na costa do norte da Patagônia chilena e informações de transporte disponíveis publicamente, pesquisadores de um estudo de 2021 descobriram que as baleias se alimentam em espaços sujeitos a intenso tráfego marítimo – e a maioria das embarcações pertencia à indústria de criação de salmão.
Uma animação (veja abaixo) baseada em alguns dos dados coletados pelos pesquisadores mostra um ponto azul solitário – a baleia – lutando com cerca de 1.000 barcos se movendo diariamente.
Além disso, ao monitorar os padrões de mergulho das baleias, Buchan disse que também descobriu que elas emergem mais à noite para se alimentar de krill – tornando os mamíferos ainda mais difíceis de serem avistados pelos navios.
“O capitão pode sentir uma pancada ou não sentir nada.”
Uma canção de amor da baleias
Usando microfones subaquáticos ou hidrofones, Buchan tem estudado a acústica das baleias nas águas da Patagônia desde 2007. Ela gravou dezenas de milhares de horas de canções de baleias azuis e descobriu que as baleias azuis na costa do Chile produzem um dialeto único – embora seja subsônico e não possa ser ouvido por ouvidos humanos.
“É uma série de pulsos de frequência muito baixa, como uma espécie de estrondo, quase”, disse ela. “E o dialeto chileno talvez tenha alguns sons extras. Talvez seja um pouco mais complexo. E talvez tenha alguns componentes de frequência mais alta”.
A identificação desse canto único da baleia, que apenas os machos fazem, permitiu a Buchan e outros conservacionistas rastrear e aprender mais sobre os movimentos da população. No entanto, o barulho que os grandes navios fazem está na mesma faixa de frequência que as canções feitas pelas baleias azuis, revelaram os dados de Buchan. Suas canções são mascaradas pelo barulho dos navios.
“Esses chamados, que são chamados reprodutivas provavelmente de machos para fêmeas para que possam se reunir e se reproduzir, não podem mais ser ouvidas pelos indivíduos”, disse ela. “Também sabemos por outras espécies que o ruído dos navios aumenta o estresse fisiológico desses animais. Então, quando todos os mamíferos estão estressados, até mesmo os humanos, os resultados reprodutivos são afetados. Assim, eles têm menos bebês”.
Toro Cortes, o veterinário da vida selvagem que realizou a necropsia da baleia azul, também trabalhou com baleias jubarte no extremo sul da Patagônia, no Parque Marinho Francisco Coloane, no Estreito de Magalhães. Lá, ele usou drones para tentar capturar amostras de muco dos jatoss de ar emitidos por seus espiráculos.
Ele disse que espera que a detecção de hormônios do estresse nas amostras ajude a construir um caso para melhores regulamentações nesta área marítima, para que os navios diminuam a velocidade à medida que as baleias passam.
“O tráfego de navios pode causar estresse real e afetar seu comportamento, mudando até mesmo onde eles se alimentam”, disse Toro Cortes em “Patagonia: Life on the Edge of the World”.
O que está sendo feito
Para reduzir o risco de colisões com navios, Buchan está trabalhando para desenvolver um sistema de alerta para as águas da costa patagônica do Chile, que alertará o tráfego de navios sobre a presença de baleias. Boias ancoradas equipadas com hidrofones para capturar o canto das baleias e sistemas de transmissão produzirão alertas informando aos marinheiros a probabilidade de encontrar baleias em suas rotas, permitindo que eles reduzam a velocidade ou mudem a rota.
“Um navio que viaja mais devagar fará menos barulho”, disse Buchan, “e um navio viajando mais devagar tem menos probabilidade de ferir fatalmente uma baleia”.
Sistemas semelhantes foram testados com resultados bem-sucedidos no Oceano Atlântico, na costa do Maine, e no Pacífico, na costa da Califórnia, nos Estados Unidos.
Com financiamento do World Wildlife Fund, protótipos de bóias estão sendo construídos no laboratório, e Buchan disse que espera que sejam testados nas águas do norte da Patagônia chilena em breve.
“As baleias estão lá com a missão de engordar para que possam sobreviver pelo resto do ano, e essa é a prioridade delas. Para elas, fugir de todo esse tráfego (de navios) é uma verdadeira interrupção desse objetivo. E também é perigoso”, disse Buchan.
“Um oceano sem baleias seria devastador para todos nós. Se queremos oceanos saudáveis, queremos que as baleias façam parte desses ecossistemas”, disse ela.