Análise: Lava Jato corroeu confiança no político tradicional, mantido no poder via eleição proporcional
Política brasileira sofreu transformações profundas, tanto nos bastidores quanto na forma como é percebida externamente
Quando a Operação Lava Jato estourou em 2014, escrevi para clientes que nada seria como antes. De fato, não foi.
A política brasileira sofreu transformações profundas, tanto nos bastidores quanto na forma como é percebida externamente.
Hoje, uma década depois, algumas dessas mudanças foram diluídas ou alteradas, mas as repercussões da operação continuam, e continuarão.
Com o passar do tempo, a Lava Jato foi assassinada e também cometeu suicídio. Erros processuais e falhas internas minaram a operação, enquanto acordos políticos destruíram muitos de seus pilares.
Na política, a causa-mortis nunca é simples e unidimensional.
Uma das maiores mudanças provocadas pela Lava Jato foi o fortalecimento do Congresso, que se aproveitou da fragilidade do governo Dilma Rousseff (PT) para acelerar sua própria autonomia, especialmente no campo orçamentário.
Esse movimento de empoderamento do Legislativo remete a outros momentos históricos, como o período de redemocratização na década de 1980, quando o Congresso também assumiu um papel central na construção da nova ordem política.
Na esfera partidária, os partidos tradicionais racharam, mas não quebraram. As eleições municipais de 2024 serão uma vitrine da resiliência de legendas como União Brasil e PSD.
Beneficiados pela proteção do establishment e pelo enfraquecimento da Presidência, esses partidos fortalecem suas bases financeiras por meio de aumentos nos fundos eleitoral e partidário, garantindo bons resultados nas eleições proporcionais (vereadores, deputados estaduais e federais).
A sobrevivência dessas legendas ecoa uma tendência histórica de permanência das elites na política partidária, como sugerido por teóricos da ciência política como Robert Michels, com sua “lei de ferro das oligarquias” (1912) e, antes dele, Gaetano Mosca em seu livro “Elementos da Ciência Política” (1896).
Na sociedade, a Lava Jato deixou um legado mais profundo e duradouro: a insatisfação generalizada com a política.
Hoje, a desconfiança do público com relação aos políticos tradicionais é palpável. Mas, atenção, estamos falando da percepção de tradicionalidade. E tudo o que se associa a isso — incluindo a mídia tradicional — acaba sendo rejeitado.
As instituições são vistas como desconectadas da realidade e focadas unicamente em autopreservação e na validação de sua própria narrativa heroica.
Mesmo quando têm razão em suas prioridades, abordam questões que grande parte da população nem deseja discutir.
O político tradicional é, em essência, chato. E ninguém aguenta gente chata.
O que ocorre é que estamos dispostos a apoiar figuras que, em circunstâncias normais, não gostaríamos — simplesmente pelo fato de que elas combatem aqueles que mais desprezamos.
O establishment político ainda consegue se preservar por algumas razões. Primeiro, os partidos do “centrão” não têm um projeto de poder coeso; estão mais interessados em eleger um grande contingente de parlamentares, ainda que sem muita coesão.
Isso lhes permite escapar de discussões polêmicas. As elites políticas se aproveitam do bem contra o mal.
Segundo, o eleitorado brasileiro tende a negligenciar as eleições proporcionais, votando de forma desatenta para vereadores e deputados, o que perpetua o ciclo de poder.
Somos culturalmente programados para acreditar que a mudança virá de cima para baixo. Imagine se o brasileiro descobrisse que, na verdade, ela começa de baixo pra cima…
Já os políticos que almejam posições de maior visibilidade — candidatos à Presidência, ao Senado, aos governos estaduais e às prefeituras de grandes cidades — enfrentam um cenário diferente e continuarão a sofrer.
Há dois motivos principais para isso. Primeiro, a Lava Jato corroeu a confiança do eleitor no político “tradicional”.
Segundo, o brasileiro tem um foco excessivo nas eleições majoritárias e pouca organização nas proporcionais.
Sem percebermos, mordemos a política tradicional quando elegemos presidentes, governadores ou prefeitos, muitas vezes considerando até o voto útil.
No entanto, assopramos nas eleições proporcionais, permitindo que partidos tradicionais mantenham o controle.
Contudo, há um fator no horizonte que pode abalar essa dinâmica pró-establishment: a eleição para o Senado em 2026.
Com dois terços da casa em disputa e uma dinâmica de um contra um, esta pode ser a primeira vez que veremos um Senado Federal claramente de direita.
Nos próximos anos, continuaremos com o morde e assopra: o voto “anti-política” nas eleições majoritárias trará novas caras e nomes barulhentos, enquanto os partidos tradicionais continuarão a dominar as eleições proporcionais.
E é nesses fóruns que o establishment continuará se protegendo — até onde puder.
*Lucas de Aragão é Mestre em Ciência Política e Sócio da Arko Advice.