Especial Eleições 2022 – Conquistas históricas para pretos, pardos e indígenas
Indígenas registraram o total histórico de 186 candidaturas, elegendo 9 representantes. Já candidaturas pretas e pardas foram, pela primeira vez, mais da metade dos candidatos da eleição.
Para além da composição partidária das cadeiras do Congresso, Assembleias estaduais/distritais e os cargos do Executivo, as Eleições 2022 apresentaram importantes marcos para minorias sociais.
Estes grupos, historicamente subrepresentados em posições de poder, encontram diversos entraves para incluir suas vozes no cenário político: desde a dificuldade no acesso à educação formal à falta financiamento das campanhas políticas pelos partidos, barreiras estruturais impedem que o cenário social do Brasil se reflita na composição política das lideranças do país.
Entretanto, o cenário começou a mudar.
Candidaturas compromissadas e com lugar de fala
Em 2022, foram eleitos em primeiro turno 525 candidatos autodeclarados pretos ou pardos, em um total de 14.712 candidaturas registradas dessa população. Isso representa um crescimento de 10,78% no número de eleitos em relação a 2018 e 12,89% em relação a 2014.
E, pela primeira vez, as candidaturas pretas e pardas superaram 50% de candidatos nas eleições, com um total de 50,27% das candidaturas registradas – um percentual um pouco mais próximo da realidade do Brasil, considerando que o país possui, de acordo com dados oficiais, 56,2% da população preta ou parda.
Para Elisa de Araújo, diretora de articulação política do IPA (Instituto de Política Preta e Advocacy) e articuladora do Mulheres Negras Decidem, o total histórico de pretos e pardos eleitos em 2022 pode ser explicado como um efeito de políticas afirmativas, como o julgamento do TSE de 2020 que determinou a distribuição proporcional de recursos para candidatos pretos e brancos nos partidos.
“A gente sabe que candidaturas competitivas são aquelas que recebem investimento, recebem dinheiro, recebem, muitas vezes, investimento institucional do partido”, diz Elisa. “E o julgamento do TSE, como outras políticas de cotas, são uma forma de reconhecer que estruturalmente, o Brasil é um país racista, e se a gente não construir ações afirmativas, se a gente não interferir no processo, esse problema de representatividade nunca será sanado”.
Além disso, especialistas também destacam que há uma mudança cultural no Brasil. Temas como o racismo, representatividade e cotas raciais estão no centro do debate público, e cada vez mais intelectuais pretos ganham voz e espaço para apresentarem seu ponto de vista.
Segundo José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, a centralidade das discussões sobre o racismo no Brasil “é expressão da persistência dos negros em denunciar e combater ao racismo, além da atenção de importantes ambientes políticos, jurídicos, sociais e da comunicação social a importância emergência dessa agenda.”
É muito interessante perceber o efeito da política de cotas, de acesso de negros a universidades. Hoje em dia a gente tem intelectuais negros fazendo ciência, nós por nós, falando de nós. A gente passa a ter esse tipo de análise que a gente não tinha antes, que não era interessante para academia, até então quase que exclusivamente branca. A gente começa a ver um movimento de pessoas do movimento negro e de pessoas que querem acessar a política institucional.
Elisa de Araújo, diretora de articulação política do IPA (Instituto de Política Preta e Advocacy) e articuladora do Mulheres Negras Decidem
Em entrevista à CNN, Giovanni Harvey, diretor executivo do Fundo Baobá para Equidade Racial, comenta que o resultado das eleições 2022, em termos de representatividade, representa um avanço.
O especialista também destaca o papel dos mandatos coletivos, que “criam as condições objetivas para que o modelo político de representação democrático no Brasil seja repensado, para que possamos de fato ter uma representação mais legítima”.
Para Harvey, não existe êxito de uma candidatura se ela não estiver conectada com outros componentes, como o da vida social, “porque são essas demais dimensões que são capazes de mobilizar o imaginário da sociedade”.
O processo de ampliação e qualificação da representação dos interesses das pessoas negras nas casas legislativas caminha numa relação de proporcionalidade com o avanço que a ocupação de espaços de decisão e de exercícios de poder por partes de pessoas negras avançam em outras dimensões da vida social.
Giovanni Harvey, diretor executivo do Fundo Baobá para Equidade Racial
Elisa de Araújo também ressalta a importância de candidaturas negras conscientes do processo histórico envolvendo a comunidade negra no país, e que se comprometam com pautas que visam ampliar as conquistas e avanços do grupo.
“O que mais me preocupo é com a qualidade dessa representação, então uma pessoa negra que se entende negra, entende historicamente o processo de ser negro e vai se comprometer a defender os direitos da população negra, compreendendo todo esse histórico, isso me interessa. O ser negro por ser negro, a representação vazia, ela não muda nada”, acrescenta a especialista.
Para a agenda política dos representantes eleitos neste ano, um dos principais projetos que envolve a população negra é a revisão da Lei de Cotas nas universidades – que completou dez anos e deveria ter sido revista em 2022. José Vicente ainda destaca as discussões sobre as cotas em concursos públicos, que estão previstas para serem revisadas em 2024.
De acordo com o especialista, “será importante também o combate à violência policial, o racismo nas relações de consumo e a implementação do Estatuto da Igualdade Racial”.
Uma eleição sem precedentes
Pela primeira vez na história, quatro mulheres indígenas ocuparão cadeiras na Câmara dos Deputados: Sônia Guajajara (PSOL) e Juliana Cardoso (PT), em São Paulo, Célia Xakriabá (PSOL), em Minas Gerais, e Silvia Waiãpi (PL), no Amapá, se juntam a um homem indígena também eleito para o cargo.
Em uma comunidade que representa, segundo o último censo de 2010, 0,5% da população brasileira, candidaturas de pessoas autodeterminadas indígenas em 2022 bateram recordes. Foram 186 registradas e 9 eleitas – dois senadores, cinco deputados federais e dois deputados estaduais.
A APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), principal organização de povos indígenas do Brasil, credita o crescimento do número de candidatos à articulação dos grupos de base, muitos dominados por lideranças jovens e integradas a diversos movimentos sociais. De acordo com a ONG, o total dos registros de candidaturas representa um aumento de 115% em relação a 2014.
Essa participação é antiga. Agora esse empoderamento, esse protagonismo dos povos indígenas, da liderança do movimento indígena para dentro da política partidária pra entender, discutir, debater esse cenário, é um pouco mais recente. E com certeza é essa vontade, essa intenção de participar mais desse processo, que incentivou muito o aumento das candidaturas.
Kleber Karipuna, coordenador-executivo da APIB
De acordo com Kleber Karipuna, coordenador-executivo da APIB, indígenas encontram dificuldades específicas para se fazer presentes nas disputas eleitorais.
“A gente não se sente contemplado nesse sistema que funciona aqui no Brasil, no nosso país em relação à escolha dos nossos representantes legítimos e originários. A gente tem uma carência, uma tendência, a debater isso melhor”, argumenta.
Karipuna ainda destaca que programas e ações que propiciam as candidaturas “vão desde conseguir encaixar a ideologia dentro de um partido, porque nós temos problemas com essa adaptação – sejam partidos de direita, seja em partidos da esquerda, encontramos problemas em relação a questão da ideologia do movimento indígena”.
Quando você entra num partido, você tem problemas internos do partido sobre repartição de cotas, do fundo partidário ou mesmo estar dentro de uma prioridade de candidatura para concorrer nesse processo.
Kleber Karipuna, coordenador-executivo da APIB
Para a próxima legislatura, Karipuna ressalta que, dentre as principais agendas dos povos indígenas, está o permanente debate sobre as demarcações das terras.
Também é importante que no próximo governo a gente tenha um debate sobre o fortalecimento da Fundação Nacional do Índio, da FUNAI. A gente precisa, junto com os parlamentares do movimento indígena, junto com o poder executivo, fazer um debate sobre qual é a melhor forma de atuação para garantir o direito à saúde dos povos indígenas. A questão do clima, a questão ambiental, está diretamente ligada à pauta indígena e à pauta do movimento dos territórios, e a gente precisa que os nossos parlamentares do movimento indígena estejam atentos e atuando para fazer frente a esses debates.
Kleber Karipuna, coordenador-executivo da APIB