Erick Jacquin: quatro restaurantes, 57 anos e uma língua afiada
Em uma tarde, o francês expõe um pouco da intimidade de chef ao CNN Viagem & Gastronomia no seu mais novo endereço em São Paulo, o restaurante Lvtetia (ou Lutécia mesmo, segundo o próprio chef)
18h51. Em menos de 10 minutos o Lvtetia abre as portas. Erick Jacquin já está ali dentro há horas: depois de deixar o restaurante Président, acompanhou o final do serviço de almoço; fez reunião com produtores; tirou foto com curiosos que pediram para conhecer o novo restaurante, mesmo que fechado; não almoçou; tomou três cafés expressos com uma meia dúzia de petits fours; atendeu ao telefone repetidamente; fez reservas; criou um menu degustação a pedido do mâitre; discutiu o uniforme dos garçons; devorou um prato de presunto cru, ainda que a espessura e a untuosidade não o agradassem.
Naquela hora, viu a brigada se juntar no meio do salão. O chef nunca tinha presenciado a cena e preferiu não sair da sua cadeira para escutar a oração. Limitou-se a dizer: “Quando vocês acabarem, quero dizer umas palavras também”.
Nunca se sabe o que Jacquin vai disparar. Seus 1,73 metro de altura distribuídos por quase 90 quilos sempre parecem mais imponentes do que numericamente são: “Olha, a energia aqui é boa, mas vocês precisam animar. O restaurante é triste, gente. Parece de um velho que vai morrer. Tá muito certinho, entendê? Quero ver o piu-piu desse velho crescer”.
Ninguém diz nada. “Já tirei o avental vermelho que vocês tinham. Por que vocês não trabalha (sic) colorido agora? Tudo preto… Aqui é muito limpo, precisa bagunçar esse restaurante, não pode ter medo: abre as garrafas de vinho, tira essa merda desse arranjo e coloca umas flores bonitas, busca a estátua que eu trouxe do Napoleão III…”. Como o silêncio persiste, Erick sai trocando objetos de lugar.
Sagitariano como o chef, o Lvtetia (com “v” mesmo) praticamente abriu para sediar sua festa de aniversário, no dia 9 de dezembro. A poucos passos do Président, na rua da Consolação, nos Jardins, é sua quarta casa na cidade (há ainda o bistrô Ça-Va e o Buteco do Jacquin).
“No Président eu posso cozinhar, mas às vezes não me deixam, porque querem falar comigo, tirar foto e também porque tenho medo de atrapalhar os cozinheiros, que já têm um jeito de fazer as coisas. Mesmo assim, eu cozinho”, desabafa o francês.
De fato, quando se mete entre as panelas, Jacquin tem um ritmo próprio, inalcançável: é o jeito de se mover, de picar, é a quantidade precisa no uso de cada ingrediente, é um empratar único. É o que ele mais ama fazer.
Em tempos de fama, porém, a cozinha é um luxo – no caso da cozinha aberta do Président, é também um dos cenários mais disputados de fotos de Instagram: “Muita gente vem dividir um prato, um petit gâteau só pra fazer uma foto. Tudo bem, desde que paguem o serviço dos garçons. O que não dá é para às 6 da manhã no aeroporto pedirem para segurar a minha bochecha, ou me pedirem para desligar o telefone pra fazer uma selfie na rua”.
Por essas e por outras, o mais querido dos jurados do MasterChef mostra-se visivelmente cansado. Nesta semana foi à pequena Dun-Sur-Auron, na França, celebrar os 92 anos da mãe. Na volta, conciliará um par de eventos com a maratona de gravações da Band e o dia a dia da restauração.
Falando nela, cada uma de suas marcas conta uma história culinária: o Président remete aos restaurantes estrelados por onde Jacquin passou e aos tempos áureos de sua extinta Brasserie, no bairro de Higienópolis.
O Ça-Va foi herança das gravações do “Pesadelo na Cozinha”. Em plena pandemia, o antigo proprietário faleceu e, seu filho, vendo o carinho dedicado durante a transformação, ofereceu o lugar. O Buteco, por sua vez, foi sugestão de seu sócio, Orlando Leone. Fã de feijoada e caipirinha, nem houve hesitação. Agora, o Lvtetia é um jeito de fazer outra coisa que Erick adora: provocar!
Chamativo sem perder a elegância, mezzo moderno, mezzo clássico, o espaço que abrigou o disputado Bar Numero, tem um sotaque peculiar – como o de sua própria fala, que, não raro, cai na ininteligibilidade.
Mais: é uma homenagem a quem o trouxe ao Brasil, o restaurateur Vicenzo Ondei. A seu convite, em 1994, antes de desembarcar na pauliceia, o francês percorreu a Itália todinha. Sim, deu tempo de se bronzear na Costa Amalfitana e de se esbaldar com vinhos na Toscana, mas acima de tudo foi um mergulho na paixão que os italianos nutrem pela gastronomia.
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Tanto é que além de homenagear o “pai Ondei”, o Lvtetia abre mão do creme de leite, do excesso de queijo e da manteiga em nome do frescor e de sabores locais. Vai daí o carpaccio como manda a tradição; a polenta cremosa sem encobrir o sabor do milho; o risoto de escargot, com os caracóis à moda florentina e o arroz allo zafferano (com açafrão), como mandam os milaneses.
As massas, vale dizer, são um episódio à parte. Algumas são tão finas que lembram delicados gyozas, todas são recheadas com generosidade e algumas se combinam em um mesmo prato. Em outras palavras, há receitas como o ravioli de camarão com emulsão de prosecco e cogumelo Paris, e o ravioli de beterraba é acompanhamento de vieiras.
Deu para entender um pouco o cansaço do monsieur? “Hoje a gente tem quatro restaurantes, tem que aguentar. Eu já trabalhei sem energia. Na rua Bahia [primeiro endereço de sua antiga Brasserie] às vezes caia a luz e a gente não reclamava. O que você faz nessas horas? Vende coisa fria, steak tartar, carpaccio, coisa que é mais fácil de fazer, um peixe que vai no forno. Mas hoje o cara estoura porque tem muita reserva. Que merda é isso? Não tem problema nenhum, mas vai embora, eu vou trabalhar”.
Desbocado por natureza, pode até parecer, mas o chef não esqueceu das agruras de manter um negócio.
“Já tive que vender o almoço para fazer o jantar. Eu pegava gelo no posto de gasolina, comprava o vinho no empório da frente com o cartão de crédito do sommelier, o meu era para pagar o transporte dos funcionários.”
“Minha mulher acordava às 4h da manhã para fazer o café da manhã do flat em que ficava o restaurante para me ajudar. A gente não tinha nada.”
Ligeiramente traumatizado, por sete anos, Jacquin declinou todos os convites para emprestar seu nome a bistrôs espalhados pelo Brasil. Então, conheceu o sócio, Orlando, e prometeu que quando quitasse sua última ação trabalhista, voltaria ao jogo.
Em pouco mais de dois anos, a dupla que nem imaginou que converteria uma loja de sapatos nos Jardins em um dos mais disputados restaurantes da capital paulista (senão do país!), vislumbra um quinto empreendimento, uma steak house no complexo Helbor Wide, na Avenida Rebouças.
“Pela frente tem muitos planos ainda”, revela o cuisinier. Prêmios estão entre eles? “Eu sou meio contra esse negócio, mas o Alex Atala falou uma coisa que eu amei: quem não gosta disso é quem não faz parte da lista. Eu sempre me achei acima de tudo. Não é o cara que tem o pinto maior que faz o melhor sexo do mundo, verdade? Eu sei que minha equipo (sic) trabalha bem e estou feliz assim”. Erick Jacquin tem motivos para estar feliz.