Turismo revive Jack, o Estripador em Londres e incomoda moradores; entenda

Apesar da brutalidade de seus crimes, o assassino se tornou uma das figuras mais lucrativas da cultura popular britânica

Elizabeth McBride, da CNN
Jack, o Estripador em Londres
O assassino desconhecido matou brutalmente pelo menos cinco mulheres na década de 1800 — mas hoje refazer seus passos é visto como uma ação inofensiva por inúmeros visitantes  • Mark Kerrison/In Pictures via Getty Images
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Turistas chegam a Londres, na Inglaterra, com uma lista de paradas obrigatórias: Palácio de Buckingham, Tower Bridge, chá da tarde — e um tour de Jack, o Estripador. Todas as noites, centenas de pessoas refazem o percurso supostamente trilhado pelo assassino em série não identificado que matou pelo menos cinco mulheres em 1888. Apesar da brutalidade dos crimes, Jack acabou se tornando uma das figuras mais lucrativas da cultura popular britânica.

Por volta das 20h, três grupos de turistas disputam espaço em Mitre Square, em Londres — local onde a vítima Catherine Eddowes foi encontrada com o rosto mutilado e um rim retirado. “Já vi dois guias saírem no tapa enquanto disputavam espaço aqui”, conta Charlotte Everitt, guia da Rebel Tours, com sede na capital britânica.

Mas, para muitos moradores da região, esse tipo de turismo passou dos limites. A inauguração do Jack the Ripper Museum, em 2015, gerou protestos. Em 2020, o órgão oficial de mapeamento britânico, o Ordnance Survey, cancelou o passeio temático “Guts and Garters in the Ripper’s East End” após receber um pedido de cliente questionando os padrões editoriais. No mesmo ano, um mural retratando o assassino foi apagado e substituído pelo nome de Catherine Eddowes — uma das vítimas.

O fascínio por crimes reais não se limita a esse canto de Londres. Uma série recente da Netflix sobre os irmãos Menendez — condenados pelo assassinato dos pais em 1989 — atraiu turistas à mansão da família em Beverly Hills. O local do massacre de Jonestown, na Guiana, também foi aberto recentemente para visitas guiadas. Em Milwaukee, há um tour chamado “Cream City Cannibal”, que percorre lugares ligados a Jeffrey Dahmer — outro assassino retratado por uma produção da Netflix.

“Nossos mortos podem nos alertar sobre os erros da história, por assim dizer. Mas o problema está na forma como escolhemos lembrá-los — existe toda uma política da memória, sobre quem é lembrado e por quê”, explica Philip Stone, do Dark Tourism Institute da Universidade de Central Lancashire, ao site da CNN. “Jack, o Estripador, é lembrado por seus crimes bárbaros e pela fama que adquiriu. Mas também foi bastante romantizado.”

Entre o real e o ficcional

Segundo Stone, o sucesso de Jack como “produto” é resultado de uma combinação de fatores. “A indústria moderna em torno do Estripador sabe se vender muito bem. Mas há também um fascínio genuíno pela história.”

“O tempo é um grande curador, mas também pode remodelar as narrativas. Existe uma teoria chamada ‘distância cronológica’: à medida que o tempo passa, a história vai sendo absorvida pela cultura popular.”

“Jack, o Estripador virou quase um personagem fictício. Foi romantizado, apropriado pela cultura pública, e isso acaba borrando as fronteiras entre o que é real e o que é fantasia.”

Vários negócios locais no leste de Londres, incluindo esta loja de fish and chips, lucram com a notoriedade de Jack, o Estripador • Divulgação/Jack The Chipper
Vários negócios locais no leste de Londres, incluindo esta loja de fish and chips, lucram com a notoriedade de Jack, o Estripador • Divulgação/Jack The Chipper

Os passeios são, de fato, populares, e as referências aos assassinatos em Whitechapel viraram parte do cenário. Um salão de beleza se chama Jack the Clipper. Um restaurante de comida rápida atende pelo nome de Jack the Chipper. A loja-conceito da marca de roupas AllSaints se chama Jack’s Place. Até pouco tempo atrás, havia até uma barraca de batata assada chamada Jacket the Ripper.

“O problema não é falar dos assassinatos de Whitechapel”, diz Everitt. “O problema é como se fala deles.” A Rebel Tours criou, em 2022, um passeio alternativo chamado "Jack the Ripper: What About the Women?" (Jack, o Estripador: E as mulheres?, em tradução literal). Inicialmente, o grupo pensou em tirar o nome do assassino do título, mas percebeu que isso dificultava muito a divulgação.

“As pessoas acham incrível quando explicamos o que fazemos”, conta ela. “Mas isso não se traduz em público. E não digo isso porque queremos multidões — nosso foco são grupos pequenos, e gostamos disso. Mas é revelador ver quantas pessoas ainda preferem o outro tipo de passeio.”

Para ela, o uso de imagens gráficas e a insistência em dizer que todas as vítimas eram prostitutas — algo que os registros históricos não confirmam — são os aspectos mais preocupantes.

“Tem guia que mostra fotos do corpo de Mary Jane Kelly”, relata. “Se você não mostraria a imagem de uma vítima atual, por que seria aceitável mostrar a dela? Ela também foi uma pessoa real.”

“Ultraje fora de controle”

O escritor conhecido como The Gentle Author, que mantém o blog Spitalfields Life, já publicou mais de cinco mil textos sobre a história do East End — mas nenhum sobre os assassinatos de Whitechapel. “Os moradores daqui ficam revoltados com esses passeios. Em uma noite qualquer, centenas de pessoas marcham por essas ruas. É um ultraje.”

Ele lembra de vizinhos que se mudaram logo após ter um filho. “Eles disseram que não podiam criar uma criança num lugar onde, toda noite, um homem ficava em frente à janela dizendo: ‘Foi aqui que alguém foi cortado do lábio até o umbigo’. É macabro.”

“Eles projetam imagens reais das cenas dos crimes nas paredes. Fazem piadas sobre mulheres que foram mortas. Você passa por ali e vê gente rindo.”

Há quatro anos, The Gentle Author passou a oferecer seus próprios passeios — voltados para a história da classe trabalhadora, das comunidades imigrantes e do processo de gentrificação no East End. O objetivo, diz ele, é “reivindicar as ruas para a comunidade”. Mas alcançar um público maior continua sendo um desafio. “A maioria dos nossos visitantes vem devido ao blog. Os tours sobre o Estripador dominam o mercado.”

Jessica O’Neil, fundadora do The Museum Guide e ex-guia de tours sobre Jack, lembra de situações bizarras. “Já vi guia correndo atrás de turistas com uma faca de açougueiro gigante. Outro colocava a trilha sonora de ‘Psicose’ em cada cena de assassinato.”

Ela era contra o uso de imagens dos crimes. “Dizem que é educativo. Talvez, se fosse num curso universitário de criminologia. Mas isso não é educação — é entretenimento.”

Jessica abandonou os passeios há cinco anos, após um episódio marcante. “Uma trabalhadora do sexo veio até mim no meio do tour, gritando: ‘Por que você não se importa comigo e com as minhas amigas? O que há de errado com você?’”, relembra. “Voltei depois para tentar encontrá-la. Não sei bem por quê — talvez para me redimir. Queria dizer que eu era diferente. Mas eu não era.”

“Nem todos os guias são terríveis, alguns tentam dar voz às mulheres. Eu tentava trazer compaixão. Mas é uma atividade mórbida”, admite. “E eu gosto de coisas mórbidas. Mas nesses tours, na maioria das vezes, as mulheres viram motivo de piada.”

Contexto histórico

O Jack The Ripper Museum disse à mídia em 2015 que "não está glorificando os assassinatos", mas muitos continuam irritados com seu tema • Divulgação/Jack The Ripper Museum
O Jack The Ripper Museum disse à mídia em 2015 que "não está glorificando os assassinatos", mas muitos continuam irritados com seu tema • Divulgação/Jack The Ripper Museum

O Jack the Ripper Museum, inaugurado em 2015, adicionou mais uma camada comercial à exploração do caso — e causou revolta. A autorização para abrir o museu foi concedida com a promessa de que o local contaria a história das mulheres do East End de Londres. O projeto original descrevia um espaço que homenagearia “as contribuições históricas, atuais e futuras das mulheres da região”.

“Todos estavam animados com a ideia de um museu que mostrasse a trajetória das mulheres no East End. E aí descobrimos que seria, na verdade, um museu do Jack, com umas tentativas bem forçadas de contar a história do bairro. Foi aí que começou a reação”, relata Catherine Owen, presidente do East End Women’s Museum — criado como contraponto ao museu do Estripador.

Mark Palmer-Edgecumbe, fundador do museu, declarou à imprensa local, em 2015, que o nome completo do espaço era Jack the Ripper and the History of Women in East London (Jack, o Estripador e a História das Mulheres no Leste de Londres, em tradução literal), que a placa estava incompleta e ainda disse: “Não estamos glorificando os assassinatos, nem celebrando os crimes; estamos fazendo uma análise forense dos assassinatos, inserindo-os no contexto histórico da época.”

Dez anos depois, o museu segue funcionando com o nome Jack the Ripper Museum, e sua loja de presentes vende ursos de pelúcia vestidos como o assassino e camisetas com a silhueta do criminoso. O museu não respondeu ao pedido de entrevista da CNN internacional, mas destacou suas avaliações positivas no TripAdvisor.

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