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    Análise: Alto escalão russo passa a sofrer críticas

    Chefe da comissão de defesa do parlamento da Rússia exigiu que as autoridades parassem de mentir e se dirigissem de maneira justa ao povo russo

    Nathan Hodgeda CNN

    Dizem que a verdade é a primeira vítima na guerra. Em nenhum lugar isso está sendo mais provado do que na Rússia, onde o governo, sediado no Kremlin, montou uma campanha de publicidade falsa para vender invasão da Ucrânia ao povo.

    O presidente russo Vladimir Putin lançou a campanha como uma “operação militar especial” – e não como uma guerra – e disse aos cidadãos que eles poderiam basicamente se esquecer do conflito na Ucrânia. Reservistas, de acordo com o que ele prometeu falsamente, não lutariam, pois as operações militares seriam deixadas para os profissionais. Enquanto isso, o Ministério da Defesa de Putin divulgava banalidades sobre o progresso no campo de batalha, com falas rapidamente reproduzidas pela televisão estatal russa.

    Mas está em curso uma curiosa mudança no espaço de informação fortemente controlado da Rússia. Os militares da Ucrânia têm feito avanços importantes de contraofensiva, tornando cada vez mais difícil ocultar as perdas dos militares russos. No mês passado, Putin declarou uma mobilização militar parcial, enviando uma mensagem à população em geral de que o seu líder estava usando força total na Ucrânia, e que os sacrifícios agora eram necessários.

    Nesse contexto, surgiram na Rússia algumas críticas públicas incomuns ao alto escalão que comanda a guerra de Putin. Tudo dentro dos limites, é claro: criticar a própria guerra ou o comandante- em-chefe da Rússia está fora da questão, mas isso não vale para os responsáveis pela execução das ordens do presidente.

    Numa entrevista recente ao apresentador de TV Vladimir Solovyov (um fanático defensor do governo), Andrei Kartopolov, chefe da comissão de defesa da Duma Estatal (o parlamento da Rússia), exigiu que as autoridades parassem de mentir e se dirigissem de maneira justa ao povo russo.

    “Em primeiro lugar, temos de parar de mentir”, afirmou Kartopolov, um coronel-geral da reserva e membro do partido governista da Rússia. “Fizemos isso muitas vezes antes. Mas, de alguma forma, aparentemente, isso não está nos levando a bons números”.

    Kartopolov reclamou que o Ministério da Defesa estava faltando à verdade sobre incidentes como os ataques nas fronteiras com a Ucrânia.

    “Nossa cidade russa de Valuyki está sob fogo constante”, contou. “Sabemos disso por todos os tipos de pessoas, governadores, canais do Telegram, nossos correspondentes de guerra. Mas só através deles. Os relatórios do Ministério da Defesa não mudam de substância. Dizem que destruíram 300 foguetes, mataram nazistas e assim por diante. Mas as pessoas sabem. Nosso povo não é burro. Mas eles não querem sequer dizer parte da verdade. Isso pode levar a uma perda de credibilidade”.

    A cidade de Valuyki fica na região de Belgorod, na Rússia, perto da fronteira com a Ucrânia. O governo da Ucrânia, sediado em Kiev, tem adotado uma posição de não confirmar nem negar quando se trata de atingir alvos russos ao longo da fronteira.

    Outras críticas vieram também de autoridades nomeadas pela Rússia que foram empossadas para gerir regiões ocupadas da Ucrânia. Num áudio recente de quatro minutos no Telegram, o vice-líder russo da região ocupada de Kherson na Ucrânia, Kirill Stremousov, lamentou que os comandantes militares russos tenham deixado “lacunas” no campo de batalha que permitiram que os militares ucranianos avançassem na região (que a Rússia declara, ilegalmente, que é sua).

    “Não há necessidade de maldizer todo o Ministério da Defesa da Federação Russa por causa de alguns, não digo traidores, mas comandantes incompetentes, que não se incomodavam, e não eram responsáveis, pelos processos e lacunas que existem hoje”, disse Stremousov. “Na verdade, muitos dizem que o Ministro da Defesa [Sergei Shoigu], que permitiu que esta situação acontecesse, poderia, como oficial, se matar. Mas tem gente que desconhece a palavra oficial”.

    Uma declaração provocadora – Stremousov talvez devesse estar consciente do fato de que líderes problemáticos de entidades separatistas apoiadas pela Rússia têm “o hábito” de morrer violentamente – mas algumas destas críticas não são novas. Apenas algumas semanas depois de Putin ter lançado a invasão em larga escala da Ucrânia, um de seus principais responsáveis pela aplicação da lei nacional, o homem-forte da Chechênia Ramzan Kadyrov, instou os militares russos a expandirem a sua campanha, o que implicava que a abordagem de Moscou não havia sido suficientemente brutal.

    Mas, depois da retirada da Rússia da cidade estratégica ucraniana de Lyman, Kadyrov tem sido mais aberto em dar os nomes dos responsáveis quando se trata de culpar comandantes russos.

    Em um post no Telegram, Kadyrov responsabilizou pessoalmente o coronel-geral Aleksandr Lapin, comandante do Distrito Militar Central da Rússia, pelo fracasso, acusando-o de afastar a sua base dos subordinados e de não conseguir suprimentos adequados para as tropas.

    “Não é uma vergonha que a Lapin seja medíocre, mas sim o fato de ele estar protegido no topo pelos líderes do Estado-Geral”, afirmou Kadyrov.

    O Institute for the Study of War (ISW), uma organização do tipo think tank baseada nos Estados Unidos, constatou que os retrocessos no campo de batalha russos, juntamente com o desconforto que existe na sociedade russa em relação à mobilização, “alteraram muito o espaço de informação russo”. Isso incluiu críticas pesadas, não apenas de homens poderosos como o checheno Kadyrov, mas também de blogueiros de guerra que muitas vezes forneceram um quadro amplo das realidades de campo de batalha para as forças russas.

    “O espaço de informação russo desviou-se significativamente das narrativas preferidas pelo Kremlin e pelo Ministério da Defesa russo de que tudo está sob controle”, observou o ISW na sua análise recente.

    “A atual onda de críticas e relatos sobre detalhes militares operacionais dos propagandistas do Kremlin é parecida com o discurso dos blogueiros pró-guerra na semana passada. A narrativa do Kremlin antes se centrava nas declarações gerais de progresso e evitava discussões detalhadas sobre as atuais operações militares. O Kremlin nunca reconheceu abertamente um grande fracasso na guerra antes da sua devastadora perda em Kharkiv Oblast, que motivou a mobilização parcial de reservistas”.

    Uma das caraterísticas centrais do putinismo é o fetiche com Segunda Guerra Mundial, conhecida na Rússia como a Grande Guerra Patriótica. Aqueles que estão do lado da guerra na Rússia falam muitas vezes com admiração das táticas brutais utilizadas pelo Exército Vermelho para combater o Wehrmacht de Hitler, incluindo o uso de batalhões de punição (enviando como bucha de canhão os soldados acusados de deserção, covardia ou vacilo) e o uso de execução sumária para evitar deserções.

    Kadyrov – que anunciou recentemente que tinha sido promovido por Putin à posição de coronel-geral – foi uma das vozes mais proeminentes a defender os métodos draconianos do passado. Em outro post recente no Telegram, ele escreveu que, se fosse do seu jeito, ele daria ao governo os poderes extraordinários de guerra.

    “Sim, se fosse a minha vontade, declararia a lei marcial em todo o país e usaria qualquer arma, porque hoje estamos em guerra com todo o bloco da OTAN”, disse o checheno, ecoando as ameaças não tão sutis de Putin que a Rússia poderia usar armas nucleares.

    E isso é preocupante. No belicoso espaço de informação da Rússia, a conversa não aborda como acabar com uma guerra horrível e dispendiosa: trata-se de corrigir os erros que forçaram um recuo russo, reforçando a disciplina, e dobrando a aposta contra a Ucrânia.

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